- O Globo
Bolsonaro empilha corpos de auxiliares para erguer a trincheira com que se blinda
Já escrevi, neste jornal, sobre a “lógica do fusível” de Jair Bolsonaro: a forma utilitária, fritadora mesmo, autoritária e patrimonialista sempre, como dispõe de colaboradores, com frequência tornados defuntos de conveniência, a depender dos interesses circunstanciais da nova corte.
O presidente não delega responsabilidades. Distribui culpas. Não dispensa ineficientes — se fiéis. Demite insubmissos — ainda que competentes. Como cobra adesão incondicional para não amaldiçoar um novo traidor (um novo Santos Cruz), coleciona colaboradores com vocação para o servilismo — o que equivaleria a um suicídio moral houvesse princípios nesta beira de precipício. Eles pulam. São os cadáveres da sabujice; geralmente desqualificados gratos pela migalha de cargo recebida, gente oportunista cujo ressentimento, condição fundamental do caráter bolsonarista, é instrumentalizado pelo projeto de poder.
(Há também os que sempre foram o que são, como o general Augusto Heleno, sobre quem se depositou expectativa de moderação — de equilíbrio — inconsistente com a natureza daquele que fora, certamente não obrigado, ajudante de ordens de Sylvio Frota.)
Em campanha, em batalha, constante, Bolsonaro empilha corpos de auxiliares para erguer a trincheira com que se blinda; mantém mortos-vivos como para-raios das sequelas de seus atos e como atrativos ao entretenimento dos que considera inimigos. A imprensa, por exemplo — cuja função, segundo o presidente, entre outras atividades para não deixar o Brasil renascer, é tombar ministros. “Se não conseguem derrubar esses zumbis, longe de me tocarem estarão” — pensará um governante especialmente suscetível a teorias da conspiração.
A estratégia walking dead explica por que ficam no governo finados como Marcelo Álvaro Antônio e Abraham Weintraub. O primeiro, fulminado por denúncias de corrupção. O segundo, por rara incompetência. São a banha — a espessa camada de gordura — que protege Bolsonaro.
O caso de Weintraub, um provocador de picadeiro, ressentido modelar, é paradigmático das escolhas do presidente — que prefere sacrificar sua administração mantendo incapazes, que põem em risco o governo, a dispensá-los se podendo passar a mensagem de que cederia a pressões dos que supõe inimigos. Isto mesmo: é a exposição das barbeiragens de Weintraub pelo jornalismo o que o sustenta; sua insuficiência sendo, pelo filtro da guerra cultural (um fim em si), uma armação dos sabotadores que querem se livrar daquele que empreende um “exorcismo na educação brasileira contra a praga comunista”. O ministro é um combatente da causa; entrega bem o que lhe foi pedido — nada a ver com um Enem seguro.
Agora circulam os obituários de Onyx Lorenzoni, chefe de uma Casa Civil que, embora sem teto, sem nada, não é engraçada. O sujeito está morto — simbolicamente, por favor — desde junho de 2019, quando o presidente o chamou de fusível. Fusível: aquilo de que só nos lembramos quando queima. Pois é.
Não tenho dó. O queimado-vivo nunca esteve à altura da cadeira (elétrica) — que ganhou como consequência da fidelidade a um infiel. Outros fatos: a incompetência não faz do inepto um capacho; nem todo capacho é vítima; e nem todo inepto é desprovido de agenda. Há os que, sendo ineptos e capachos, querem ser governador.
Lorenzoni morreu, convertido em penico do palácio, como depositário manso da culpa por não articular politicamente para um governo que se orgulha de poder prescindir da articulação política. Belo epitáfio. Desde então, vaga pelo Planalto como um zumbi para fins de mordomo, à disposição para pagar os patos, nas horas vagas conspirando contra a agenda de Paulo Guedes — foi quem dinamitou o envio da reforma administrativa em 2019. Isto no caso de não haver servido de mera ferramenta para vontade superior.
Santo nunca terá sido. E, se vai ficando, a permanência dirá mais sobre o chefe do que sobre a alma penada: é útil ter à mão quem confunde lealdade com desonra.
Ex-ministro em atividade, foi em férias, não sem um toque de perversidade, que Lorenzoni perdeu o que lhe restara no ministério sem chão, o PPI, não à toa para o colega que tentava minar — contra quem agora decerto sobrará ainda mais tempo para investir. O mordomo zumbi, assim se esclarece, mantido para boicotar, desde dentro, reformas impopulares e assumir como suas responsabilidades, doravante sem maiores distrações burocráticas, o uso imoral do jatinho da FAB por um apaniguado amigo da família Bolsonaro e o espetáculo grotesco da exoneração-recontratação-exoneração do elemento.
Esses e os futuros produtos do patrimonialismo bolsonarista e do melindre do presidente ante a voz reativa das redes: tudo obra de Onyx Lorenzoni; que é capaz de esculpir mesmo durante as férias. Uau! Periga ser promovido e virar ministro.
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