- Folha de S. Paulo
Ter quatro dias distantes das preocupações econômicas e da briga política deveria ser direito humano básico
Nestes tempos, ter quatro dias distantes das preocupações econômicas e da briga política deveria ser um direito humano básico. Confesso que senti um certo prazer de ver as notícias na segunda-feira (24), constatar que as bolsas do mundo todo estão em queda livre graças à epidemia do coronavírus e, mesmo assim, sentir que aquilo não me diz respeito; pelo menos até quarta-feira (26).
A civilização exige a limitação dos prazeres e a organização para objetivos de longo prazo. Mas qual é o sentido de se viver num mundo em que apenas a lógica da produção e do planejamento importam, e em que as paixões sejam cada vez mais domadas? A vida também precisa ser aproveitada, e de preferência antes da distante aposentadoria.
De uns anos para cá, como forma de compensar os custos da civilização, vimos dando vazão justo ao lado mais sombrio de nossas paixões: ao desejo de morte e dominação, entregando cada vez mais espaço de nossas almas à mentalidade de guerra, da distinção amigo-inimigo, que é a lógica que leva ao totalitarismo. O real antídoto da violência de extrema direita, contudo, não é a polarização para a esquerda, e sim a subversão dessa lógica: a possibilidade da convivência alegre e despreocupada entre todos, independentemente da identidade de cada um. Em suma, um pouco de Carnaval.
É claro que, num mundo que força a politizar todo e qualquer ato (da escolha da roupa ao filme a que assistimos), cavar um espaço para a convivência e para o prazer sem sentido político direto é, no final das contas, também um ato político. Note aí o “também”: a política entra como acidente, jamais como motivação principal.
Se a festa popular se transforma em “luta” por qualquer causa que seja —mesmo uma causa boa e meritória—, deixa de ser festa. É bonito ver um Jesus favelado no desfile da Sapucaí. Assim como é renovador zoar em gritos de guerra as lideranças políticas que parecem odiar a própria existência do prazer. Mas se as “causas” tomarem a dianteira, a real causa de estarmos ali deixa de existir. Carnaval não é nem pode ser passeata. Nesse sentido, que bom constatar que a patrulha das fantasias não pegou para valer.
É claro que o sossego de uns é a oportunidade de outros. Enquanto pulávamos na avenida ou descansávamos na rede, o BNDES decidiu liberar empréstimos para produtores rurais cujo Cadastro Ambiental Rural (CAR) ainda esteja pendente. A invasão de terras indígenas pelo garimpo aumentou 91% no ano passado; o desmatamento da Amazônia, 29,5%. A catástrofe do clima que nada fazemos para evitar promete ser especialmente severa no Brasil. Sem falar na destruição das enchentes nas grandes cidades.
Com as bolsas desabando, nossa perspectiva econômica para o ano piora, aumentando no governo a tentação de uma guinada populista também na economia. Isso para não falar das forças policiais rebeldes que fazem das vidas dos cidadãos moeda de troca do corporativismo miliciano, tudo com apoio tácito da Presidência. E se o coronavírus nos pegar em cheio?
O pesadelo bate à porta. Razões para se preocupar, para lutar e para planejar não faltam. Mas, por favor, só a partir de quarta-feira. Ou quinta. Ou melhor: segunda de semana que vem, que ninguém é de ferro! No mundo inteiro, a luta pelo poder em sua pior faceta dá as cartas. O Brasil ainda tem o privilégio de sonhar que ela não tem a palavra final.
*Joel Pinheiro da Fonseca, economista, mestre em filosofia pela USP.
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