- Folha de S. Paulo
Cabe às oposições construir uma visão contemporânea de crescimento com equidade social
A ilustradora Juliana Russo saiu a pé de sua casa, em um bairro paulistano de classe média alta, rumo ao centro da cidade. Lápis na mão e olhar sensível, foi anotando o que via no seu caderno. O resultado do passeio foi "Pequenos Acasos Cotidianos", livro de desenhos a um tempo delicado e contundente, editado em 2019 pela Sala Aberta. Os pobres estão por toda parte e em muitas páginas, ali, como se fossem parte da paisagem. A nos lembrar o quanto a iniquidade é onipresente entre nós.
Segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua do IBGE, cerca de 1/3 da força de trabalho do país —ou 27,3 milhões de pessoas— ganha até um salário mínimo. Em 2019, a fila de espera para o Bolsa Família chegou a meio milhão de famílias.
Ainda assim, tendo ocupado posição de relevo na agenda de todos os governos democráticos das últimas três décadas, a preocupação com a pobreza sumiu até mesmo da retórica da gestão Bolsonaro.
A mensagem presidencial enviada ao Congresso para a abertura dos trabalhos deste ano definiu com clareza a prioridade do Executivo: as reformas econômicas destinadas a destravar o ansiado crescimento econômico. Ninguém, com razoável bom senso e informação, pode duvidar de que há muita reforma por fazer: no sistema tributário, nas regras fiscais, nas relações federativas, para citar apenas as que foram ressaltadas no texto.
Mas o sentido de cada qual depende, em boa medida, do lugar que se atribui aos objetivos entrelaçados de reduzir a pobreza e amainar as desigualdades que ela alimenta. Por isso, é notável, mas não surpreende, a omissão de qualquer iniciativa dirigida à melhoria da proteção social devida ao enorme contingente de brasileiros pobres.
Ao contrário. Embutidas nas reformas prioritárias, há propostas socialmente perversas. É o caso daquela que, a pretexto de aumentar a autonomia dos municípios na alocação de recursos destinados por lei à educação e à saúde, inevitavelmente levará à disputa das duas áreas por recursos sempre insuficientes.
Tampouco está entre as prioridades do Executivo a legislação do Fundeb (Fundo de Desenvolvimento da Educação Básica), que termina neste ano e precisa ser recriado para evitar o desmanche de todo o sistema de educação básica.
Não há por que esperar de um governo que, além da clamorosa incompetência, é amálgama de formas extremas de liberalismo e populismo, tenha uma visão contemporânea do crescimento com equidade social. Cabe às oposições construí-la ou, para todos os efeitos, abdicando de sua condição, se conformar com a pobreza silenciosamente incorporada à nossa paisagem.
*Maria Hermínia Tavares, professora titular aposentada de ciência política da USP e pesquisadora do Cebrap.
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