- O Globo
Priorizar a engrenagem econômica é evidência de desumanidade. O luto é improdutivo
É Darwinismo Social, conceito que fundamenta regimes supremacistas, o que o presidente da República defende para o Brasil no enfrentamento à pandemia do coronavírus. Sem eufemismo, não há outra expressão para definir a preferência pela saúde da economia em detrimento da vida de parte da população idosa brasileira. Milhões de desempregados combinam menos com o projeto político do atual governo do que milhares de pais e mães, avôs e avós sepultados. Para não deixar dúvida, o mandatário eleito com 57 milhões de votos — em uníssono com seus pares na ideologia, no empresariado, nas igrejas — defendeu em rede nacional o isolamento dos mais velhos, a volta das crianças às escolas e dos adultos ao trabalho.
O grupo que comanda o país na travessia da aguda crise demonstra ou consciência vil ou desconhecimento inaceitável sobre a sociedade brasileira. De duas uma, ambas terríveis. A Organização Mundial da Saúde recomenda o distanciamento social e o confinamento doméstico como antídotos para reduzir o ritmo de contaminação que, fora de controle, leva ao colapso o melhor dos sistemas de saúde. Sanitaristas, infectologistas, pesquisadores — a ciência, enfim — alertam para o risco de crianças e jovens, comumente assintomáticos, transmitirem aos parentes a Covid-19. Ainda assim, nos Estados Unidos, epicentro da doença, duas em cada dez pessoas internadas com a doença tinham entre 20 e 44 anos.
A Covid-19 não é exclusiva de idosos, mas é mais letal para a faixa etária a partir dos 60 anos. Ainda ontem, a Secretaria de Saúde do Rio de Janeiro informou que os nove óbitos (quatro homens, cinco mulheres) confirmados no estado no primeiro mês da doença no país foram de idosos ou pessoas com comorbidades. Pregar volta à normalidade, sabendo das características da pandemia, é optar pela seleção natural. Aos 65 anos, idoso e, portanto, grupo de risco, o presidente usou a (suposta) condição física de atleta para rebaixar o corona a vírus de uma gripezinha. Os menos saudáveis que lutem, é o recado.
Na Itália, onde mais de oito mil já morreram de complicações da Covid-19, quase um em cada quatro habitantes tem mais de 65 anos. É o país europeu com convivência mais intensa entre idosos e jovens, avós e netos, muitos vivendo no mesmo domicílio. O Brasil não é tão diferente. Aqui também são comuns os domicílios conviventes, com mais de uma família na mesma casa. Sem falar de miúdos sob os cuidados dos mais velhos.
Está suja a lente de quem vê o Brasil como nação de perfil demográfico jovem. Na exposição de motivos para justificar a reforma da Previdência, em vigor desde o ano passado, a equipe econômica do ministro Paulo Guedes chamou atenção para a razão de dependência minguada, em razão da queda da natalidade combinada ao aumento da longevidade. Nos anos 1980, o Brasil tinha 14 habitantes em idade ativa (15 a 64 anos) para cada brasileiro de 65 anos ou mais; hoje são sete para um; em 2060, dois para um.
O Brasil tem 30 milhões de habitantes com 60 anos ou mais de idade, 14% do total. Em capitais como Rio de Janeiro (22,7% da população), Porto Alegre (22,3%) e Vitória (19,7%), a proporção se aproxima da Itália. Não foi por acaso que a prefeitura de Porto Alegre instituiu multa de R$ 429 para idosos que, durante a quarentena, circularem pelas ruas sem justificativa.
Priorizar a engrenagem econômica, nesse cenário, é evidência de desumanidade. O luto é improdutivo. Crescentemente, pesquisadores se debruçam sobre efeitos da morte de entes queridos no mercado de trabalho e no sistema de saúde, em decorrência de transtornos mentais como depressão. O presidente e seus aliados também desconsideram o impacto dessas possíveis perdas no bem-estar das famílias.
No Censo 2010 idosos eram responsáveis por 22,9% dos lares brasileiros. Nos domicílios com renda de até um salário mínimo — os mais pobres, portanto — 45% dependiam do trabalho, da aposentadoria, da pensão ou do Benefício de Prestação Continuada de um mais velho. Significa que a morte de um idoso pode lançar em aguda vulnerabilidade famílias inteiras, de uma hora para outra. As famílias mais pobres do Brasil são formadas predominantemente por mulheres, negros, nordestinos.
Normalidade é agenda de homens convictos do próprio privilégio e inapelavelmente inoculados pelo vírus da falta de empatia.
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