- Valor Econômico
Na pandemia, política e compaixão são água e óleo
Política e compaixão são universos que não se misturam, está claro, assim como economia e comiseração. Em uma calamidade como a que vivemos, fica evidente o brutal “trade-off”: a classe política deve tolerar quantas mortes na pandemia? É aceitável que os mais vulneráveis morram para que a engrenagem gire? Qual o custo social da parada da engrenagem?
Não há desavisados neste jogo e as opções de cada um dos protagonistas têm em mente o equilíbrio das forças que buscam o poder. Sobre o comportamento do presidente da República, há quem veja em sua atuação intenções preocupantes.
Para o filósofo Marcos Nobre, presidente do Cebrap, a perspectiva eleitoral deixou de ser o plano A na estratégia política do presidente Jair Bolsonaro para se manter no poder. Nobre acredita que o presidente concluiu que a pandemia do coronavírus comprometeu definitivamente o cenário econômico para 2022.
A depressão econômica retira o favoritismo de uma candidatura à reeleição. Bolsonaro teria passado então a apostar no caos social, eliminando os instrumentos de controle da pandemia que tentam ser impostos, como forma de estimular o surgimento de um cenário que permita a ruptura institucional.
“Bolsonaro não está pensando mais em eleição para se manter no poder. Ele acha que com o caos há um ambiente para as Forças Armadas interferirem. Se há algo que as Forças Armadas não toleram é o caos”, aposta Nobre.
Segundo o filósofo, em meio ao tumulto do coronavírus o governador de São Paulo, João Doria (PSDB), surgiu em cena para aumentar o grau de confusão. Ele nota que é nítido que o tucano se movimenta para tentar assumir um papel de liderança entre os governadores e avoca para si o figurino de antibolsonarista por excelência. Ou seja, busca garantir a polarização que lhe interessa em 2022 agora em 2020.
Na visão de Nobre, a manobra de Doria só favorece Bolsonaro. Partir da premissa que haverá 2022 quando o adversário já não trabalha mais com este cenário seria um equívoco. A antecipação da disputa eleitoral faz com que o tucano perturbe o surgimento de uma grande coalizão nacional que imponha a Bolsonaro o isolamento vertical de si próprio e conduza o país a uma saída institucional.
Esta é uma visão que suscita diversas indagações. A primeira é se Bolsonaro de fato já não trabalha mais com perspectiva eleitoral. Não é apenas no Brasil que existe uma tensão entre o governo central e as administrações regionais, e nem apenas aqui há uma discussão sobre a extensão da política de confinamento. Ela se repete em outras partes.
A dinâmica é semelhante: o governo central parece mais preocupado em não paralisar a economia do que evitar mortes a qualquer custo. Os governos regionais pressionam por um fechamento total e cobram socorro da administração central. A mensagem subliminar é política: quem vai pagar a conta eleitoral do desastre econômico que se seguirá à catástrofe sanitária?
Presidentes como Bolsonaro, Trump e Lopez Obrador querem passar esta conta para a oposição. Nem todos têm US$ 2 trilhões para injetar na economia. Em países sem margem fiscal, como o Brasil, o abismo é mais fundo.
Aliás, melhor seria dizer que, no Brasil, vale passar a conta para qualquer um, inclusive para aliados. Foi o golpe que o governador de Goiás, Ronaldo Caiado, acusou anteontem, ao anunciar seu rompimento com Bolsonaro. Ele disse textualmente que o presidente procurava criar uma situação “como se amanhã o desemprego fosse responsabilidade das pessoas que estão contendo o fluxo”, ou seja, os governadores. A transferência de responsabilidade, portanto, pode embutir um cálculo eleitoral.
Outro aspecto a se considerar é qual a força que Bolsonaro teria para levar a um fechamento de regime, em meio a uma situação de caos social e econômico. O fato do vice-presidente ser um general reformado dá às Forças Armadas maior tranquilidade para aceitar uma decisão do mundo político de arrumar um pretexto qualquer para afastar Bolsonaro, dentro dos parâmetros da lei do impeachment.
O apoio do establishment empresarial a Bolsonaro está diretamente ligado à capacidade do presidente de implementar as reformas prometidas pelo mercado. É algo que pode desaparecer como que por encanto se por acaso surgir uma alternativa real de poder, já que no cenário presente a capacidade do presidente de promover reformas naturalmente diminuiu.
O presidente parece dispor do apoio incondicional das igrejas evangélicas, muitas das quais também cerraram fileiras e ocuparam ministérios nas gestões de Lula e Dilma. Talvez seja um sustentáculo suficiente para dar musculatura eleitoral a um governante que vai se tornando impopular, mas pouco para segurar na cadeira um presidente que eventualmente entrar em uma espiral de ingovernabilidade.
Finalmente há os ativistas da Internet, todos muito ligados a uma espécie de negacionismo da política, da mídia, da ciência, de que tudo que se tornou conhecimento doutrinário. Empoderam o presidente e o presidente os empodera, dando likes, retuítes e postagens aos vídeos e WhatsApps insanos que recebe. Olavo de Carvalho é o exemplo mais notório, mas não o único, e talvez sua influência junto ao presidente tenha sido superestimada. São a base popular sólida de Bolsonaro, a ligação entre o líder e as massas. São capazes de segurar o presidente? A moral da história é que, querendo, Bolsonaro talvez não consiga golpear as instituições, mesmo em um ambiente de balbúrdia.
Sobre Doria, é fato que o governador paulista acelerou a estratégia de antecipar a disputa eleitoral. Não tanto por sua presença diuturna na mídia nesta fase de combate à pandemia - os demais governadores também estão fazendo isso -, mas pelo grau de antagonismo em relação ao presidente. Foi de Doria que partiu a iniciativa de colocar o conflito com Bolsonaro em discussão, na última reunião do presidente com os governadores. Ele parece ter no horizonte sólidas condições de forjar uma aliança do PSDB com o DEM e o PSD nas eleições de 2022.
Doria continua emparedado pela questão de sempre - ninguém se sente sócio de seu projeto no mundo político e empresarial, nem seu próprio partido.
A disputa política por aí prosseguirá, subjacente, enquanto a estatística de mortos pela covid-19 desenvolver a sua espiral de subida. Ela, com certeza, sobreviverá à pandemia.
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