Quem tem juízo e quem não tem – Editorial | O Estado de S. Paulo
Para Bolsonaro, não importa preservar a economia ou as vidas dos cidadãos; a única coisa que interessa é salvar seu governo e, principalmente, sua imagem
Os líderes do G-20, grupo das principais economias do mundo, anunciaram uma injeção da ordem de US$ 5 trilhões na economia global para enfrentar os impactos da pandemia de covid-19. “O G-20 se compromete a fazer o que for necessário para superar a pandemia”, informou o grupo em nota oficial. No comunicado, o G-20 se diz “determinado a não poupar esforços, individual e coletivamente, para proteger vidas; salvaguardar empregos e a renda das pessoas; restaurar a confiança, preservar a estabilidade financeira, estimular a recuperação e o crescimento econômico; impedir a interrupção do comércio e da cadeia global de suprimentos; ajudar todos os países carentes de assistência; coordenar ações nas áreas financeira e de saúde pública; e combater a pandemia”.
Na reunião, feita por teleconferência, todos os líderes do G-20 tiveram alguns minutos para comentários. O presidente Jair Bolsonaro usou seu tempo para defender medidas para estimular a economia e destacar os supostos progressos no desenvolvimento de uma droga à base de hidroxicloroquina para conter o novo coronavírus – cujas pesquisas, a despeito do otimismo de Bolsonaro, estão ainda longe de ser conclusivas.
Deve ter ficado claro para os demais chefes de governo do G-20 que não podem contar com o colega brasileiro, perdido em seus devaneios sobre uma cura milagrosa que viria a tempo de salvar milhares de vidas e, o que lhe parece mais importante, evitar o colapso econômico do Brasil – pois, segundo suas próprias palavras, “se afundar a economia, acaba com meu governo”.
Assim, para Bolsonaro, não importa nem preservar a economia nem as vidas dos cidadãos; a única coisa que interessa é salvar seu governo e, principalmente, sua imagem, com vista à próxima eleição. Por isso, insurge-se contra todos aqueles que – governadores à frente, mas também seu ministro da Saúde – propõem ou ministram remédios amargos, mas imprescindíveis, para conter a epidemia.
Como mostrou o G-20 ao se propor a gastar US$ 5 trilhões (mais que o dobro do PIB brasileiro) contra a pandemia, o que o mundo está enfrentando não se cura com licor de cacau Xavier. Graças à liderança caótica e hesitante de Bolsonaro, a equipe econômica até agora apresentou medidas tímidas que representam menos de 4% do PIB, segundo cálculo da Fundação Getúlio Vargas, enquanto os Estados Unidos poderão despender até 11% do PIB e o Reino Unido, 17%, para ficar apenas em países governados por políticos que Bolsonaro admira. O Reino Unido vai bancar até 80% da renda dos trabalhadores cujos salários forem suspensos, dentro de um limite de 2.500 libras mensais, bem acima do salário mínimo de 1.300 libras. Já Bolsonaro dará um “voucher” de R$ 600 (60% do salário mínimo) para trabalhadores informais – lembrando que, inicialmente, o presidente havia proposto R$ 200, e só bancou um valor maior depois que o Congresso propôs R$ 500.
Para Bolsonaro, contudo, tudo vai se resolver se as medidas de isolamento social forem imediatamente suspensas. Tornou a atacar os governadores, dizendo que estes terão de arcar com encargos trabalhistas de quem for obrigado a fechar seu estabelecimento comercial. Para ampliar a pressão, seu governo, contrariando diretrizes do próprio Ministério da Saúde e o apelo de todas as principais entidades médicas do País, lançou nas redes sociais uma demagógica campanha intitulada “O Brasil não pode parar”, que minimiza a epidemia e defende “voltar à normalidade”. Com isso, irresponsavelmente, estimula os brasileiros a desobedecerem à determinação de governos estaduais para manter o isolamento social, única forma de impedir que a epidemia cause o colapso do sistema de saúde – que, se ocorrer, ampliará de modo exponencial o número de mortos e, consequentemente, o desastre econômico, pois mortos não trabalham.
Mas Bolsonaro não está nem um pouco preocupado. “Eu acho que não vai chegar a esse ponto”, disse o presidente. “Até porque o brasileiro tem que ser estudado. Ele não pega nada. Você vê o cara pulando em esgoto ali. Ele sai, mergulha e não acontece nada com ele.” Caramba!
O maior desafio – Editorial | O Estado de S. Paulo
Profissionais de saúde arriscam a vida nesta crise; demais cidadãos têm de ficar em casa
Com o contágio do coronavírus no Brasil encaminhando-se para o seu pico, os profissionais de saúde – gestores, pesquisadores, técnicos e, sobretudo, enfermeiros e médicos – encontram-se face a face com aquele que provavelmente será o maior desafio de suas vidas. Os episódios de sacrifício, heroísmo, tragédia, solidariedade e superação relatados por seus colegas que sobreviveram à catástrofe, como na China, ou que estão em plena voragem, como na Itália, mostram que o batido bordão “sangue, suor e lágrimas” está para ser transferido da cena marcial para a sanitária.
Na China muitos médicos morreram, inclusive o diretor do hospital de Wuhan e seu colega Liu Zhiming, que foi perseguido pelo Partido Comunista por “espalhar rumores” sobre um vírus inaudito. Na Itália já morreram 17 médicos e mais de 2.600 foram infectados. O sistema “luta para oferecer serviços regulares, inclusive cuidados com gestantes e parturientes, enquanto os cemitérios são sobrecarregados”, disse um grupo de médicos de Bergamo em artigo no New England Journal of Medicine (NEJM). “Pacientes idosos não estão sendo ressuscitados e morrem sós sem cuidados paliativos, enquanto as famílias são notificadas por telefone, frequentemente por um médico bem-intencionado, exausto e emocionalmente arrasado, que nunca viram antes.”
Numa pressão sobre o sistema de saúde sem precedentes desde a 2.ª Guerra, vários hospitais italianos se tornaram fontes de infecção, muitas vezes pelo colapso no suprimento de material de proteção. Ambulâncias e equipes infectadas contagiaram colegas e pacientes. Os médicos italianos alertam para a importância de descentralizar o atendimento: “Cuidados em casa e clínicas móveis evitam movimentos desnecessários e diminuem a pressão sobre os hospitais”. Os horrores da Itália podem se abater sobre o Brasil se população e autoridades não cooperarem aguerridamente com os combatentes no front.
O maior risco está no exaurimento de materiais protetores, leitos e respiradores. Luvas e máscaras podem ser produzidas com razoável velocidade, mas a distribuição precisa ser muito bem organizada. A Itália tem cerca de 12 leitos de UTI por 100 mil habitantes. Mas algumas cidades precisaram aumentar a oferta em 50%. Segundo estudo da FGV, o Brasil tem um número razoável de leitos: 15,6 por 100 mil habitantes. A distribuição social e regional, contudo, é desigual. A média do SUS é de 7,1 leitos. Em 72% das regiões, a oferta do SUS é inferior à mínima necessária em períodos típicos.
O estudo calcula que num cenário-base de 20% da população infectada, com 5% de casos graves, 294 das 436 regiões de saúde do País ultrapassariam a taxa de ocupação de 100%. A oferta de respiradores segue um padrão similar. Em poucas palavras, não é impossível que, como na Itália, os médicos tenham que escolher quem será abandonado à morte.
Um estudo publicado no NEJM sobre critérios na alocação de recursos escassos em pandemias identifica quatro valores fundamentais: 1) maximizar os benefícios, salvando o máximo de vidas ou o máximo de anos de vida, priorizando os pacientes que viverão mais; 2) tratar as pessoas igualmente, atendendo os primeiros que aparecerem ou promovendo um “sorteio”; 3) promover o valor instrumental, priorizando aqueles que podem salvar outros; e 4) priorizar aqueles em pior situação, os mais doentes ou os mais jovens, que terão vivido menos se morrerem sem tratamento.
Para evitar ou minimizar escolhas como essas é crucial “achatar a curva” do contágio. O devastador desta epidemia não é tanto a taxa de letalidade, comparativamente baixa, nem mesmo a alta taxa de contágio, mas a sua velocidade. Daí a importância de um choque de contenção para evitar uma hospitalização massiva ao mesmo tempo. Enquanto os profissionais de saúde arriscam suas vidas, é preciso que os demais cidadãos, conforme a expressão de um jornalista português que viralizou na internet, “tenham noção”: “Aos vossos avós foi-lhes pedido para irem à guerra, a vocês pedem-vos para ficar no sofá”. É esse o nosso desejo.
Cabeças a prêmio – Editorial | O Estado de S. Paulo
Ofensiva jurídico-penal contra Maduro e seus asseclas é a mais incisiva ação dos EUA
Em meio aos esforços globais para fazer frente aos desafios sanitários, sociais e econômicos impostos pela pandemia de covid-19, o governo dos Estados Unidos anunciou, na quinta-feira passada, o indiciamento de Nicolás Maduro e de membros da cúpula do regime chavista da Venezuela por participação em um esquema de “narcoterrorismo”. As autoridades americanas anunciaram ainda a oferta de US$ 15 milhões em recompensa por informações que levem à prisão de Maduro,
considerado o “líder do cartel”, e de US$ 10 milhões pela captura de Diosdado Cabello, presidente da Assembleia Constituinte e “número dois” do regime; Hugo Carvajal, ex-diretor de Inteligência do Exército; Clíver Alcalá, general reformado; e Tareck El Aissami, vice-presidente para a área econômica. Nos últimos dois anos, os Estados Unidos tomaram medidas semelhantes contra membros da ditadura chavista, decretando prisões e confiscos de bens, mas nunca contra a cúpula do regime. A ofensiva jurídico-penal contra Maduro e seus asseclas é a ação mais incisiva já adotada pelo governo americano para pôr fim ao flagelo impingido ao povo venezuelano pela sanguinária ditadura chavista.
De acordo com o secretário de Justiça dos Estados Unidos, William Barr, as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc) “inundaram o território americano” com cerca de 250 toneladas de cocaína sob o beneplácito da cúpula do regime chavista, regiamente recompensada com o dinheiro oriundo da operação criminosa. Nicolás Maduro, acusou Barr, é o maior beneficiário deste esquema, tanto financeira como politicamente. Segundo Geoffrey Berman, procurador do Distrito Sul de Nova York e um dos responsáveis pelas acusações, “o escopo e a magnitude deste esquema de tráfico de drogas só foram possíveis porque Maduro e outras instituições corrompidas da Venezuela proveram apoio político e militar às operações (criminosas)”, disse o procurador ao jornal Financial Times.
Há muito os Estados Unidos tentam minar a capacidade de ação de Nicolás Maduro investigando e processando indivíduos leais ao regime. Considerado um pária internacional – mais de 50 nações já não o reconhecem como presidente da Venezuela, incluindo o Brasil – e enfrentando uma onda de protestos que só foi interrompida pelas restrições de circulação impostas pela pandemia de covid-19, o ditador chavista conta única e exclusivamente com o apoio da cúpula militar de seu país para se manter no poder. E este apoio custa muito caro. Ao estabelecer as milionárias recompensas pela captura de Maduro e próceres do regime chavista, o governo americano, evidentemente, pretende criar um ambiente favorável a traições dentro do regime, notadamente das lideranças militares que hoje o sustentam.
Se Maduro só permanece no Palácio de Miraflores pela “lealdade” da cúpula militar venezuelana ao regime e esta “lealdade” pode ser comprada, sua permanência no poder passou a ser apenas uma questão de preço. Terá o ditador capacidade de oferecer aos militares que o cercam ainda mais do que já oferece em dinheiro e altos cargos em empresas estatais para fazer frente às milionárias recompensas oferecidas por Washington? “Colocar uma recompensa de US$ 15 milhões (pela captura de Maduro) pode estimular uma vontade real de haver traições dentro do próprio sistema. Agora há incentivos financeiros para traí-lo”, disse ao Estado o analista Erik Del Bufalo, professor da Universidade Simon Bolívar, em Caracas.
As acusações penais contra Nicolás Maduro e membros da cúpula chavista, que podem ser condenados à prisão perpétua nos Estados Unidos, chegam em um momento de particular fragilidade da oposição ao regime na Venezuela e, em especial, de enfraquecimento da liderança do presidente encarregado, Juan Guaidó. A ação surpreendente do governo americano tem potencial para reverter este curso e para concluir a mais grave crise política, econômica e humanitária na América Latina em décadas, além de dar ao presidente Donald Trump um troféu a ser exibido em sua campanha pela reeleição.
Pandemia nas favelas – Editorial | Folha de S. Paulo
Como conter o vírus em casas superlotadas, sem saneamento e coleta de lixo?
A pandemia de Covid-19 impõe desafios diferentes para cada país. Aqui, 11,5 milhões de brasileiros moram em casas superlotadas, com mais de três pessoas por dormitório, e 31 milhões não têm acesso a uma rede geral de distribuição de água —cuja falta é comum nas favelas da Rocinha, no Rio, ou de Paraisópolis, em São Paulo.
Populações pobres do Brasil sofrem de doenças infecciosas como malária e dengue, agravadas pela urbanização desordenada. Assentamentos precários carecem, por definição, de infraestrutura básica.
Não surpreende, com efeito, que a agência das Nações Unidas para moradia preveja que o impacto do novo coronavírus vá ser maior em áreas densamente povoadas, atendidas por sistemas de transporte superlotados e sem sistema adequado de coleta de lixo.
Projeta-se que quase 10% da população brasileira viva hoje em “aglomerados subnormais”. O último censo demográfico do IBGE, realizado em 2010, antes da recessão de 2014-16, contabilizou 6.329 favelas em 323 municípios.
Enquanto as autoridades demoram para detalhar como a ajuda emergencial chegará a trabalhadores informais, desempregados e outros vulneráveis, a vida não espera. Reportagem da Folha mostrou como a fome tem exigido que moradores de favelas paulistanas saiam às ruas em busca de ajuda.
Pesquisa do Data Favela constatou recentemente que 72% dos habitantes desses aglomerados não dispõem de poupança suficiente para manter por uma semana seu padrão de vida já precário.
Além da transferência imediata de renda para esse contingente desassistido, são imprescindíveis medidas de curto e médio médio prazos que aumentem a resiliência dessas comunidades.
Autoridades locais de saúde devem fortalecer as redes comunitárias já mobilizadas para o combate à Covid-19 nas favelas. Do Complexo do Alemão (Rio) a Heliópolis (São Paulo), moradores têm se mobilizado para arrecadar itens de higiene, alimentos e água.
Urge elaborar diretrizes claras de ação, baseadas em evidências e adaptadas para a realidade de populações carentes. Nesse sentido, a Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade formulou um material acessível com orientações sobre a Covid-19 destinadas a favelas e periferias.
Ocioso dizer que, a longo prazo, só políticas habitacionais consistentes e a superação do vergonhoso atraso brasileiro em saneamento básico constituem respostas verdadeiras ao problema. Sem isso, restam apenas paliativos.
Recursos preciosos – Editorial | Folha de S. Paulo
Na crise, corporativismo não pode evitar corte de jornada e salário de servidor
Mal se começa a calcular o impacto nas contas públicas das medidas de combate ao coronavírus e de mitigação dos efeitos sociais da paralisia econômica. Em uma estimativa preliminar, o secretário do Tesouro Nacional, Mansueto Almeida, disse que o déficit primário federal deverá passar neste ano de exorbitantes R$ 300 bilhões.
Dito de outra maneira, esse é o montante que o governo terá de tomar emprestado para cobrir suas despesas com pessoal, custeio administrativo, programas sociais e investimentos —o chamado resultado primário não inclui os encargos com juros da dívida.
Na versão aprovada pelo Congresso, o Orçamento de 2020 mira um déficit máximo de R$ 124 bilhões. Entretanto os gastos ficarão muito acima do previsto, e as receitas cairão devido à recessão iminente e à necessidade de conceder alívio tributário a empresas.
Não há o que questionar quanto ao imperativo de tais providências, que, aliás, já tardam. Não por acaso, a legislação contempla a possibilidade de relaxar os limites para os dispêndios em calamidades.
Será ilusório, porém, imaginar que os cofres serão abertos sem custos posteriores. A dívida pública brasileira —que pela metodologia do Fundo Monetário Internacional ronda os 90% do Produto Interno Bruto— só se equipara, entre as principais economias emergentes, à da Argentina em crise.
Os sacrifícios necessários para deter a expansão desse passivo, ininterrupta desde 2014, serão maiores daqui em diante. Nesse sentido, cumpre desde já buscar meios de eliminar gastos não prioritários ou excessivos. Aqui se destaca a possibilidade de reduzir jornadas e salários de servidores públicos.
Defendida pela área econômica do Executivo e pelo presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia (DEM-RJ), entre outros, a medida se justifica duplamente.
A despesa do país com o funcionalismo está entre as mais altas do mundo, o que estreita a margem para outros desembolsos, e esse estrato bem remunerado da sociedade já se encontra protegido da crise pela garantia de estabilidade no emprego —à diferença da enorme maioria dos brasileiros.
A alternativa de corte de jornadas e salários já consta da Lei de Responsabilidade Fiscal, mas o Supremo Tribunal Federal formou maioria contra a regra no ano passado. Uma mudança constitucional, portanto, faz-se necessária.
Resta esperar que, diante da conjuntura dramática do país, as cúpulas dos três Poderes deixem de lado o corporativismo obtuso e o apego mesquinho a privilégios.
País precisa fixar a Ciência e o SUS como prioridades – Editorial | O Globo
No sistema público de saúde, não pode haver preconceitos contra métodos de gestão do setor privado
Não se sabe quanto tempo vai levar até a imunização dos humanos contra o novo coronavírus. Incerta, também, é a dimensão dos efeitos desastrosos, sobretudo na economia. Certeza possível é a de que em algum momento adiante a pandemia vai acabar e, então, será necessário reconstruir o país em bases diferentes daquelas existentes no dia 26 de fevereiro, quando se confirmou o primeiro caso de contaminação no Brasil.
Vai ser preciso fortalecer estruturalmente o Sistema Único de Saúde. O SUS está sendo posto à prova e superando expectativas quanto à funcionalidade numa situação inédita e absolutamente crítica.
A melhoria da rede de serviços de saúde pública vai além da construção de hospitais e ambulatórios. É notável que, na última década, tenha sido tema recorrente no topo das pesquisas de opinião sobre os principais problemas do país, e, no entanto, obteve pouca ressonância no Executivo e no Legislativo.
Saúde como prioridade deverá ser tópico de maior relevância na agenda de reconstrução nacional. Aumentar a eficiência do sistema representa benefício com endereço coletivo. Significa também, como está evidente, moldar um escudo de segurança nacional. É questão de vida.
As fragilidades do SUS estão à vista, mas passíveis de solução rápida, se for cumprida a Constituição, que estabeleceu o sistema de saúde universalizado — único recurso de três em cada quatro brasileiros.
Significa valorizar o capital humano disponível no próprio sistema. O esforço dos sanitaristas ao desenhar o SUS, nos anos 80, está pendente de ações de expansão da rede de saneamento (inclusive com privatizações). Acesso a água, esgoto e coleta de lixo, como está demonstrado, é problema de segurança coletiva. Será necessário ainda criar uma força de defesa civil e sanitária para situações como a atual, que tende a se repetir. Relevante, também, é a organização de um programa nacional de reconversão industrial. Há o precedente da mobilização durante a Segunda Gerra Mundial. A ameaça agora é invisível —os germes — ,e o campo de batalha é na rede pública de saúde, que precisa ter uma gestão mais eficiente, sem preconceito contra métodos do setor privado. A capacidade de resposta precisa ser rápida e a reconversão industrial planejada para produção de materiais e equipamentos sanitários básicos, hoje escassos.
Outro aspecto é a modernização dos laboratórios públicos líderes na pesquisa e produção de insumos químico-farmacêuticos. Desde a crise da epidemia de meningite, nos anos 70, o país reluta em investir na tecnologia setorial. Hoje, a capacidade de produção nacional de testes do coronavírus é limitada. Parte da surpresa pandêmica tem origem nas rarefeitas consultas à comunidade científica na formulação de políticas públicas, especialmente a de Saúde. A reconstrução, depois da emergência, precisa ter a premissa de que a Ciência é arma para a defesa e o progresso do país.
Trump, Bolsonaro e Obrador perdem a chance histórica de ação conjunta – Editorial | O Globo
Líderes transmitem mensagens incoerentes e parecem perdidos nas próprias contradições, derivadas de motivações políticas
Eles governam os três maiores países do continente americano, e estão enviando sinais contraditórios sobre a pandemia do novo coronavírus a um conjunto de 672 milhões de pessoas.
Donald Trump, nos Estados Unidos, Jair Bolsonaro, no Brasil, e Andrés Manuel López Obrador, no México, se mostram desconectados da realidade em flertes com o negacionismo e apelos à flexibilização das restrições à quarentena domiciliar, recomendada pela comunidade científica mundial, especialmente numa etapa em que as três nações começam a enfrentar o período de pico da disseminação da doença.
Trump, que está em campanha pela reeleição em novembro, ainda consegue se mostrar o mais comedido do trio presidencial. Num dia anuncia a “reabertura” da economia, no outro afirma que “o melhor para nossa economia é uma vitória muito forte sobre o vírus”. Ao menos por enquanto, ele não se aventurou numa defesa pública de que as pessoas saiam às ruas, desconsiderando sucessivos alertas e recomendações científicas.
Jair Bolsonaro, que está em campanha pela reeleição desde a posse, foi muito além de Trump na ação e no discurso reacionário.
Classificou a pandemia como mera “gripezinha”, contra todas as evidências científicas. Radicalizou, numa suposta defesa da saúde econômica do país. Acabou a semana isolado pelo juízo coletivo de prudência sanitária e perseverança na quarentena pela preservação da vida em sociedade.
No México, também devido a razões político-eleitorais, o presidente López Obrador tem surpreendido a todos por se opor ao que diz: num dia anuncia ter entregue aos cientistas a formulação e execução de uma política nacional contra o coronavírus, e no seguinte escandaliza epidemiologistas ao minimizar os riscos da pandemia com encomendas de poções “milagrosas” e convocar concentrações públicas, nas quais distribui abraços e cumprimentos. López Obrador está em campanha para conquistar maioria parlamentar nas eleições do ano que vem.
Líderes das três maiores democracias da região, Trump, Bolsonaro e López Obrador transmitem mensagens incoerentes e parecem perdidos nas próprias contradições, derivadas de motivações políticas.
Sem a bússola do bom senso na governança, deixam escapar a chance histórica de se unirem para uma ação solidária e coordenada de esforços para enfrentar o desafio comum de salvar vidas e a economia do continente americano.
Os desafios institucionais no combate ao coronavírus – Editorial | Valor Econômico
Momento não pode ser usado para que propostas arbitrárias ganhem espaço tanto na pauta do Executivo quanto na agenda do Parlamento
Veio do ministro da Justiça e Segurança Pública, Sergio Moro, uma das poucas declarações minimamente tranquilizadoras de uma autoridade federal na semana passada. Em entrevista ao Valor, o ministro assegurou que, ao que lhe consta, “não estão em cogitação” no governo medidas de exceção como o estado de sítio.
É fato que a assertiva não afasta totalmente a possibilidade de discussões desse tipo estarem em curso no Executivo sem que o ministro da Justiça esteja ciente. Isso por si só já demonstraria falta de coesão do governo.
A história do Ministério da Justiça remonta ao período do Império e o posto sempre foi um dos principais cargos de confiança do chefe de governo. Seus ocupantes passaram os anos acumulando funções diretamente ligadas ao aprimoramento das instituições do Estado e à harmonia entre os Poderes.
Neste governo, seu titular já esteve mais próximo do presidente da República. Mesmo assim, não deixa de ser relativamente reconfortante ver que as prioridades do Ministério da Justiça em grande parte convergem com as emanadas do Ministério da Saúde, principal executor das medidas de combate ao novo coronavírus.
Entre essas iniciativas estão, por exemplo, o estabelecimento de restrições em portos e o uso de agentes da Força Nacional de Segurança Pública em ações de apoio no combate e na prevenção da covid-19.
No atual momento, porém, crescem as divergências entre o governo central e os demais entes da federação. Também são incertos os riscos que podem surgir desse desencontro institucional.
Ainda assim, a decretação de estado de sítio seria uma medida extrema que em nada contribuiria para a manutenção do ambiente necessário à aprovação de todas as medidas de combate à pandemia e de enfrentamento aos seus efeitos socioeconômicos. Afinal, segundo a legislação brasileira, durante a vigência de intervenção federal, do estado de defesa ou do estado de sítio, a Constituição não pode ser emendada. Algumas ideias postas à mesa são justamente emendas constitucionais.
A questão vai além. A decretação de estado de sítio pressupõe a autorização do Congresso, uma instituição frequentemente hostilizada pelos apoiadores do presidente da República, e a liberação para que o chefe de governo adote uma série de medidas coercitivas.
Pela gravidade de sua natureza, tais medidas precisam ser descritas: obrigação de permanência em localidade determinada; detenção em edifício não destinado a acusados ou condenados por crimes comuns; restrições relativas à inviolabilidade da correspondência, ao sigilo das comunicações, à prestação de informações e à liberdade de imprensa, radiodifusão e televisão; suspensão da liberdade de reunião; busca e apreensão em domicílio; intervenção nas empresas de serviços públicos; e requisição de bens. Todas elas constam do artigo 139 da Constituição Federal.
É preciso registrar, contudo, que ideias de teor autoritário não partem apenas de aliados do presidente Jair Bolsonaro.
Existe no Congresso, por exemplo, a intenção de se aprovar um projeto para permitir a realização de empréstimos compulsórios. Esses recursos seriam buscados junto a empresas com patrimônio superior a R$ 1 bilhão, que pagariam 10% do lucro registrado no ano passado.
À divulgação da articulação para a aprovação dessa questionável iniciativa, duas informações positivas se seguiram. A primeira foi que o presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia, é contra. Logo na sequência, ficou claro também que a equipe econômica tampouco a subscreverá.
O combate à covid-19 representa um dos maiores desafios recentes para autoridades de todo o mundo. No Brasil, seu enfrentamento ganha ainda mais urgência, pois a economia já tentava se recuperar de um prolongado período em que permaneceu desaquecida. Há um alto grau de informalidade e grande parcela da população em situação de vulnerabilidade.
Mesmo assim, o momento não pode ser usado para que propostas arbitrárias ganhem espaço tanto na pauta do Executivo quanto na agenda do Parlamento. Este deve ser um princípio fundamental a conduzir a atuação de todos as autoridades, que, legitimamente eleitas, precisarão agir com responsabilidade para que este período seja depois revisitado por historiadores e reconhecido, sim, como um momento crítico. Mas não como um capítulo danoso ao ambiente de negócios e ao estado democrático de direito.
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