- Folha de S. Paulo
É até difícil interpretar o que Bolsonaro tinha em mente quando foi à TV
Parecia que tinha dado certo. Na segunda-feira passada, Bolsonaro deu sinais de que passaria a apoiar o esforço dos governadores contra a pandemia. Houve alguma liberação de recursos, que não foi grande, mas foi um bom começo. Parecia que alguém tinha conseguido convencer o presidente da gravidade da situação.
Mas é o Jair.
Na terça-feira, o presidente da República foi à TV para matar gente. Voltou a dizer que a Covid-19 era só uma “gripezinha” e mandou a população voltar às ruas. Mentiu como sempre e como nunca. Mandou para a morte o grande número de idosos que ainda acredita nele. Nos dias seguintes, obrigou o ministro da Saúde, que vinha fazendo um bom trabalho, a se tornar cúmplice de seus crimes, para que nunca pudesse denunciá-los. Mandetta voltou atrás no pronunciamento de sábado, mas não se sabe o tamanho do dano que já tinha sido feito. Muita gente voltou às ruas.
A essa altura, é até difícil interpretar o que o presidente tinha em mente quando foi à TV para matar gente. Talvez tenha sido só sociopatia: talvez ele simplesmente não compreenda que a vida dos outros mereça consideração. Talvez tenha se inspirado em Trump, que vem discursando a favor da volta ao trabalho —sem data marcada, após estudos, e com a manutenção do isolamento por enquanto. Note-se que até o ideólogo Steve Bannon defende um isolamento forte que permita uma saída rápida da crise. Talvez os brasileiros morram porque o presidente da República assiste a vídeos ainda mais toscos que os de Bannon no YouTube.
Mas também é possível que Jair tenha tentando um golpe de jiu-jitsu muito além de sua faixa. Pode ter criticado o isolamento enquanto torce para que ele dê certo. Se der, o número de casos será pequeno e Bolsonaro poderá mentir que o risco nunca foi tudo isso, não precisava ter sacrificado a economia, ele bem que avisou.
Se é isso que Bolsonaro tem em mente, está jogando errado, porque todo dia ele diminui as chances de o isolamento dar certo. Seus adeptos convocam carreatas. O governador de Santa Catarina, do ex-partido de Bolsonaro, vai encerrar o isolamento. Ao contrário do governo Trump, Bolsonaro mal começou a gastar dinheiro para combater a crise, e sem dinheiro as pessoas vão acabar tendo mesmo que arriscar a vida indo trabalhar.
Daí em diante, cada novo cadáver vai para a conta do Jair. E tem que ir mesmo. Foi ele quem matou essas pessoas na terça-feira, 24 de março de 2020, quando foi à TV para matar gente.
Resta ao Brasil apoiar quem está do seu lado: os governadores e prefeitos que promovem o isolamento enquanto novos leitos são criados, mais material médico é comprado e a economia é reorganizada para sobreviver à crise. O Congresso, que aprovou a renda mínima de R$ 600 (não, não foi o Jair). A imprensa brasileira, que vive um grande momento. E, sobretudo, nossos cientistas e profissionais que estão na linha de frente e são nossa maior esperança.
Faça a lista de quem já foi atacado por Bolsonaro: são os que estão salvando vidas brasileiras. Torça para que eles tenham sucesso, Jair, dê-lhes todo o dinheiro que você tem. Não deveríamos estar falando de manobras políticas em uma hora dessas. Se você nos obrigar a falar, falaremos com raiva, e, desta vez, todos juntos.
*Celso Rocha de Barros, servidor federal, é doutor em sociologia pela Universidade de Oxford (Inglaterra).
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