quarta-feira, 29 de abril de 2020

Fernando Exman* - Símbolos de uma República em crise

- Valor Econômico

Trégua entre as alas do governo não deve ser duradoura

Nas cortes, aprende-se nos livros de história e manuais de cerimonial, os gestos têm tanta força quanto as palavras. É o que ocorre em Brasília, onde frequentemente as mensagens não são passadas de forma explícita por meio de sentenças completas, frases com sujeito, verbo e predicado.

O simbolismo é um costume político e as autoridades usam atos públicos para, mesmo sem abordar diretamente um assunto, enviar recados. Auxiliares são prestigiados ou colocados no ostracismo, dependendo dos lugares que ocupam à mesa ou no palco. Destinos são definidos muito antes das nomeações ou das exonerações chegarem ao “Diário Oficial da União”. Em alguns momentos, contudo, os gestos são feitos tarde demais ou não apresentam a naturalidade necessária para ganharem credibilidade. As aparições públicas do presidente Jair Bolsonaro e de alguns ministros de Estado nos últimos dias estão repletas desses exemplos e, por isso, merecem atenção.

Depois de praticamente ceder o Palácio do Planalto para o ex-ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta retomar sua carreira política em grande estilo, com entrevista e discursos de despedida, Bolsonaro forçou a saída de Sergio Moro do Ministério da Justiça. Houve desgaste com sua base eleitoral, mas o cálculo parece outro. O ex-juiz da Lava-Jato é odiado por grande parte da classe política tradicional, a mesma que o presidente sempre criticou e agora tenta se aproximar num momento em que está isolado.

Um isolamento que a própria Presidência tentou relativizar ao cercar Bolsonaro de todos os demais ministros, quando ele foi fazer um pronunciamento para se defender das acusações de Moro. Os ministros que podiam tentavam se esconder atrás dos mais altos e os que ocupavam a primeira fila da tropa de choque, olhavam para o infinito. O governo perdia um dos seus pilares. Um ato que seria para demonstrar força acabou evidenciando as fragilidades e as preocupações do ocupante do principal cargo da República.

Esse é o tipo de comportamento que foge ao controle dos membros do cerimonial, encarregados de garantir que seja observado todo um roteiro previamente estabelecido para as festas oficiais, as solenidades ou as visitas ao chefe do governo. Uma missão desafiadora quando o presidente costuma negligenciar protocolos de segurança e expor a vida palaciana nas redes sociais.

A internet é o ecossistema em que Bolsonaro conseguiu deixar de ser um deputado do baixo clero para emergir como uma das principais forças políticas de um país dividido. Um ambiente praticamente sem regras de etiqueta. Propício a discursos radicais e à proliferação de notícias falsas, ou seja, o lugar perfeito para que um outro gesto de aproximação fosse executado.

Após atacar o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), Bolsonaro surpreendeu até os ministros mais próximos e apareceu ao vivo, vestindo bermuda e chinelos, em seu perfil nas redes sociais. Assistia a uma transmissão feita pelo ex-deputado Roberto Jefferson (PTB-RJ).

O tema da “live” era um suposto golpe parlamentar em curso. E o espectador não estava em um local qualquer, mas em uma sala da residência oficial, o que deu ainda mais dramaticidade ao episódio. A imagem transmitida pelo presidente o mostrava acompanhado apenas de seguranças, todos em silêncio. A apatia dos presentes só era quebrada quando um garçom, também devidamente uniformizado, oferecia pães de queijo ou algum sanduíche.

O pivô do escândalo do mensalão voltava ao Palácio do Planalto, desta vez virtualmente, para prometer apoio incondicional a um presidente que aparecia nas telas de computadores e telefones celulares praticamente sozinho. Uma prévia de como será o relacionamento do presidente com os partidos do Centrão: sem intimidade, uma troca de interesses que ninguém sabe ainda aonde vai chegar.

Bolsonaro e os líderes do Centrão se conhecem muito bem. Em seus 28 anos na Câmara, o presidente passou por algumas dessas siglas e pode-se dizer sem medo de errar que não há confiança entre os lados. O então deputado nunca seguia as orientações de bancada, mas também não fazia exigências. Pedia apenas que o ajudassem a ter espaço na tribuna semanalmente para fazer seus discursos. Queria também ser indicado como membro titular da Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional.

Bolsonaro era bom nas urnas e não atrapalhava o relacionamento desses partidos com o governo da ocasião. Nunca foi de agregar, talvez por isso não tenha percebido a relevância simbólica da ausência de integrantes da ala que diverge do ministro da Economia, Paulo Guedes, no ato de desagravo que promoveu ao chefe da equipe econômica nesta semana. Com isso, se por um lado reafirmou a autoridade de Guedes, por outro ficou explícito agora quem de fato pode ser considerado aliado de primeira hora do ministro.

Diante de um próximo choque entre desenvolvimentistas e liberais, existe o risco concreto de antecipação de um processo de desembarque de autoridades desiludidas com os rumos do governo. Não é o caso dos militares, que servem o Estado e possuem o senso de missão e o compromisso com a hierarquia como princípios. Mas nada impede que funcionários de carreira tirem licença para trabalhar na iniciativa privada, aproveitando para ganhar dinheiro num momento em que seus conhecimentos são valiosíssimos.

É difícil acreditar que a trégua será permanente. O armistício terá um fim quando o próprio presidente começar a impacientar-se com os resultados da economia, o colapso do sistema de saúde em algumas regiões metropolitanas e o aumento da miséria. Teme-se pelo pior, o caos social, mas muito antes disso já haveria quem defendesse a necessidade de reformulação da política econômica.

A ala derrotada sairia do governo dizendo que tentou fazer o melhor para o Brasil, mas foi impedida. Os que ficarem precisarão dos cerimonialistas para promover uma solenidade em que a coesão e o otimismo do governo serão de novo apresentados à sociedade, mas rapidamente depois colocados à prova pelos fatos.

*Fernando Exman é chefe da redação, em Brasília

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