- Valor Econômico
Dá melancolia ler a edição nº 1 do “Valor”, há 20 anos
Eu me lembro exatamente quando e onde estava quando li a edição nº 1 do Valor Econômico, há 20 anos. Eu era praticamente um estagiário de luxo no Ministério da Fazenda quando me mandaram assistir a um seminário sobre a reforma da Previdência em Curitiba. Era a primeira vez que eu viajava de avião, e ao entrar na aeronave a comissária de bordo me entregou um exemplar do jornal de economia que acabara de ser lançado no Brasil.
Muita coisa mudou desde então. Não há mais Varig, três reformas da Previdência foram aprovadas (e ela continuava em déficit), o ministério trocou de nome e (quem diria?) o economista recém-formado - que naquele dia não sabia se olhava pela janela do avião ou lia fascinado o novo jornal escrito por um supertime de jornalistas, com layout inovador e cheio de dados - hoje assina uma de suas colunas.
Vinte anos depois folheio a primeira edição do Valor e reflito sobre as voltas que o mundo e o Brasil deram. Em 2/5/2000, o Valor custava R$ 1,50, e os R$ 5,00 de hoje refletem exatamente os 238% de variação do IPCA no período - um alerta para quem acredita que a inflação deixou de ser um problema no Brasil. Naquele tempo o dólar valia R$ 1,80 e a meta da Selic estava em 18,5%. “Bons tempos”, muitos dirão.
Era um outro mundo. Na página A14 há uma foto dos líderes de então: Tony Blair, Fernando Henrique, Massimo D’Alema, Bill Clinton, Lionel Jospin e Gerard Schröder propondo uma Terceira Via que prometia conciliar justiça social e livre mercado num mundo cada vez mais globalizado. Deu ruim.
Mas muita coisa continua como dantes: Ribamar de Oliveira chamava a atenção para a carga tributária que alcançava 30,3% do PIB graças a uma perniciosa concentração em contribuições sociais aplicadas em cascata, uma distorção de nosso federalismo disfuncional.
O exemplar inaugural traz ainda assuntos que se tornaram recorrentes ou premonitórios de crises nos anos seguintes: Claudia Safatle e Marli Olmos cobriam uma greve de servidores da Receita Federal por aumento de salários e Francisco Góes relatava as ameaças de paralisação dos caminhoneiros por causa do preço do frete e tarifas dos pedágios. E na mesma semana em que seria sancionada a Lei de Responsabilidade Fiscal, o Congresso debatia um projeto de renegociação de dívidas dos Estados, enquanto Rodrigo Maia e Eduardo Paes discutiam uma proposta de constituir um fundo de R$ 700 milhões para financiar campanhas eleitorais. No Rio de Janeiro, o governador Garotinho prometia a privatização da Cedae, a companhia estatal de saneamento que sempre foi um locus de corrupção e hoje distribui água contaminada aos cariocas.
A edição traz também uma longa reportagem sobre suspeitas de fraude no sistema bancário e uma discussão sobre uma suposta vantagem de bancos estrangeiros no leilão de privatização do Banespa. Duas décadas depois, nosso sistema financeiro está muito mais sólido, apesar de a insegurança jurídica do país ter espantado a maioria dos gringos e a concorrência bancária ainda desafiar o Banco Central e o Cade.
E nestes tempos em que Bolsonaro procura desesperadamente o apoio do Centrão para sobreviver, fica o alerta do então presidente do Senado, o cacique baiano Antonio Carlos Magalhães, que demonstrava sua força em entrevista a César Felício: “Eu tenho o governador, os três senadores, 95% dos prefeitos, 30 dos 39 deputados federais. Me mostre alguém que tenha um poder como este onde faz política”.
Nada, porém, mudou tanto quanto a tecnologia. No artigo de apresentação do projeto, a equipe do Valor se orgulhava dos seus 200 computadores, “sendo 21 notebooks”. Também pudera: outra reportagem informava que o mundo àquela época tinha apenas 140 milhões de usuários de internet - sendo 2 milhões no Brasil. E Cristiano Romero, de Washington, anunciava a intenção dos Estados Unidos entrarem com uma ação na OMC contra o Brasil. O motivo? CDs piratas. Mas é bom não se iludir: o primeiro número traz ainda entrevista de Bill Gates defendendo-se das acusações de domínio do mercado, nada muito diferente do que hoje vemos hoje com as chamadas “tech giants” Google, Apple, Amazon, Facebook e... Microsoft.
No entanto, a melhor indicação dos efeitos do tempo são os artigos das principais lideranças políticas do país na época, escritos especialmente para a estreia do Valor. Fernando Henrique Cardoso, àquela altura no sexto ano do seu governo, tecia loas ao recém-lançado tripé macroeconômico e apostava num ciclo de crescimento contínuo de crescimento na casa dos 4% por pelo menos 5 anos. Só não contava com o apagão, cujos riscos foram apontados em reportagem da página A6 - mas com declarações do ministro de Minas e Energia e dos presidentes da Aneel e da ONS negando essa possibilidade.
No artigo de Lula, o “sapo barbudo” ainda brigava com o “Lulinha paz e amor”. Ao mesmo tempo em que acusava FHC e o FMI de tornarem o país “uma nau sem rumo que navega ao sabor dos ventos da globalização neoliberal” e propunha controle de capitais para tirar o Brasil da crise, seu artigo é um prenúncio do que os futuros governos do PT teriam de bom e de ruim: medidas voltadas aos mais pobres (renda mínima, aumento do salário mínimo e estímulo ao crédito ao consumidor) e políticas econômicas que desaguaram em ruína fiscal e grandes escândalos de corrupção, como colocar o BNDES para conceder crédito subsidiado às empresas, estimular a formação de multinacionais brasileiras e lançar um grande programa habitacional.
Em tempos de ameaças autoritárias e “fake news”, chegar aos 20 anos fazendo jornalismo diário comprometido com fatos, dados e informação de qualidade é a principal notícia do dia. Vida longa ao Valor e ao seu excelente time de jornalistas e funcionários!
*Bruno Carazza é mestre em economia, doutor em direito e autor de “Dinheiro, Eleições e Poder: as engrenagens do sistema político brasileiro”.
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