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Ameaça à democracia
No dia em que mais caixões de mortos por coronavírus se acumularam ao pé da rampa do Palácio do Planalto (agora são 7.025), o presidente Jair Bolsonaro protagonizou outra manifestação popular antidemocrática contra o Congresso e o Supremo Tribunal Federal e a favor de uma intervenção militar.
Em 19 de abril passado, à porta do Quartel-General do Exército, em Brasília, Bolsonaro disse em manifestação da mesma natureza que estava do lado dos seus devotos e que nada negociaria. Não explicou o que se recusava a negociar. Talvez se referisse a negociação política de cargos no governo.
Ontem, Bolsonaro elevou o tom do seu discurso. Acompanhado de filhos e de uma dezena de seguidores histéricos com sua presença, desceu a rampa do palácio atrás de uma gigantesca bandeira do Brasil e depois de ter pronunciado ao vivo um discurso incendiário e desafiador nas redes sociais onde afirmou:
– As Forças Armadas e o povo estão conosco. Daqui para frente não só exigiremos, faremos cumprir a Constituição. Ela será cumprida a qualquer preço. Cheguei ao meu limite. Não tolerarei mais a interferência de outros poderes.
No sábado, Bolsonaro reuniu-se no Palácio do Planalto com o general Fernando de Azevedo e Silva, ministro da Defesa, os comandantes do Exército, Marinha e Aeronáutica, e os demais generais que o cercam na condição de ministros. Obteve o apoio deles à solução que pretende dar ao problema da Polícia Federal.
Uma vez que demitiu da direção da Polícia Federal o delegado Maurício Aleixo, Bolsonaro nomeou para seu lugar o delegado Alexandre Ramagem, que cuidou de sua segurança após a facada em Juiz de Fora, e ganhou a confiança de sua família. O ministro Alexandre de Moraes, do Supremo, barrou a nomeação.
Bolsonaro comunicou aos ministros que encontrara um jeito de driblar a decisão de Alexandre. Nomeará para a vaga de Aleixo um nome ligado a Ramagem. Encaixará Ramagem ali. Na prática, Ramagem é quem mandará na Polícia Federal. Mais tarde, junto ao Supremo, tentará anular a decisão do ministro Alexandre.
O general Luiz Eduardo Ramos, da Secretaria do Governo, saiu da reunião a comentar que o Supremo só tem criado problemas para o presidente. Não é o único general que pensa assim. Ramos sonha suceder no comando do Exército seu colega Edson Leal Pujol. Bolsonaro acha que Pujol não é suficientemente alinhado com ele.
O ministro da Defesa não se oporá à substituição. Pujol não foi sua primeira escolha para comandar o Exército. O ministro indicou para o lugar o general Paulo Humberto Cesar de Oliveira, então chefe do Estado Maior. Bolsonaro vetou porque ouvira falar que o general o criticara um dia. Entrou Pujol, o oficial mais antigo.
Quando a política entra no Exército por uma porta, a disciplina costuma sair pela outra. Quando o presidente da República se nega a governar com o apoio de partidos, só lhe restam o apoio das Forças Armadas e o apelo direto pelo apoio dos seus seguidores. É o que faz Bolsonaro. De outras ferramentas não dispõem.
Às vésperas de entregar dezenas de cargos ao Centrão, o grupo de partidos mais fisiológicos com representantes no Congresso, Bolsonaro procura esconder sua rendição à política do “é dando que se recebe”. A troca de cargos por votos é o único recurso que tem para tentar barrar um eventual processo de impeachment.
Sua base de apoio popular rachou com a saída do governo do ex-ministro Sérgio Moro, da Justiça. De servo obediente até o último momento, Moro virou denunciante e adversário de Bolsonaro. Coletou provas de que ele quis promover uma intervenção política na Polícia Federal. Aspira disputar a eleição de 2022.
Os garotos Bolsonaro estão em apuros. Carlos e Eduardo são investigados em dois inquéritos abertos para descobrir quem organiza e financia atos públicos em favor de Bolsonaro, e quem dissemina notícias falsas para atingir a honra de desafetos deles. Flávio é investigado por ter embolsado grana de terceiros.
Com quantas legiões militares conta Bolsonaro para aplicar um golpe? Generais da ativa que preferem não ser citados asseguram que o Exército está imunizado contra uma aventura de tal espécie. À moda antiga, não se verá tanques rolando por aí. Nem se verá à nova moda a transmissão de um golpe pelas redes sociais.
Mas é fato que governo algum desde o fim da ditadura foi encabeçado por um capitão e teve como vice um general. Governo algum empregou um número tão grande de militares. São mais de 1.200. Usufruem dos benefícios de dois mundos: o da farda e o civil. Estão de volta ao poder graças aos votos de Bolsonaro.
O poder é afrodisíaco.
Devotos a serviço de distrair a atenção do distinto público
Deu certo mais uma vez
A manifestação antidemocrática de ontem encomendada aos bolsonaristas mais radicais de Brasília teve pelo menos um objetivo imediato: ocupar parte do espaço que a mídia tradicional e as redes sociais dedicariam exclusivamente ao depoimento do ex-ministro Sérgio Moro à Polícia Federal e ao aumento do número de mortos e de casos confirmados de coronavírus no país.
O objetivo foi atendido. O que disse o presidente Jair Bolsonaro antes e depois da manifestação virou manchete de capa nesta segunda-feira dos mais importantes jornais e tema obrigatório dos noticiários do rádio e da televisão. Assim será pelos próximos dias, salvo se o próprio Bolsonaro aprontar algo mais grave. Ele não se preocupa que falem mal dele, desde que falem. Regra antiga.
O Procurador-Geral da República, Augusto Aras, reunirá sua equipe para decidir que providências tomará quanto à manifestação. Deverá também investigar quem a promoveu e financiou como já faz com a manifestação de 19 de abril último que ocorreu diante do Quartel-General do Exército. A essa altura, já conhece em linhas gerais o depoimento de Moro.
Caberá ao ministro Celso de Mello, do Supremo Tribunal Federal, a decisão de tornar público de imediato o depoimento ou de só fazê-lo mais tarde para não prejudicar a coleta de novas provas contra Bolsonaro fornecidas por Moro.
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