Durante o tempo do isolamento social, tenho me ocupado em acompanhar, como posso, os ziguezagues da conjuntura crítica que atravessamos. Saio dessa labuta por um momento para, neste breve texto, compartilhar uma preocupação política adicional, que tem a ver não tanto com a rotina da política democrática, mas com a percepção social sobre ela.
Percebemos, ou supomos, o impacto da militância digital bolsonarista sobre essa percepção. Preocupa-me ainda mais, no entanto, a apropriação desse meio por profissionais do discurso antidemocrático. Noves fora os delírios ditatoriais ou fascistas e as meras ostentações de baixo calão, a versão mais sofisticada e virtualmente eficaz desse discurso é a que se apropria da ideia de democracia. Sofisticada, pois manipula o discurso da democracia direta, ou da democracia de alta intensidade, discursos críticos da democracia representativa e os faz de bumerangues, emulando a parte da esquerda que com eles simpatiza. Eficaz porque resume, numa narrativa simples, duas questões muito complexas: a da relação entre soberania popular e representação política e a da história da formação política do Brasil. Começarei pela segunda.
A fábula de que tudo no Brasil começou com o povo e as forças armadas: é preciso desmascarar essa farsa. E dizer não! No começo havia o estado, os senhores, as armas de ambos e uma população que não era povo. Com o tempo, o poder do Estado foi ficando maior que o dos senhores. Por que? Porque não se sustentou só na força. Para manter sua autoridade, sobre a população e os senhores, o estado precisou criar instituições. Foi através delas que a população do Brasil se tornou povo brasileiro. É essa História que querem desconstruir.
Precisamos nos vacinar contra o risco que corremos de facilitar essa desconstrução. Sim, facilitamos a missão dos destruidores quando nos deixamos levar pela ideia, também fabulosa, de que no Brasil houve povo antes das instituições. Isso nos desarma para enfrentar essa ideologia mistificadora e reacionária do povo cristão fundador. Mais do que isso: essas ficções que cresceram na nossa praia da esquerda nos paralisam politicamente porque sugerem que devemos ter vergonha do que vimos a ser. Enquanto lamentamos o edifício que construímos, os profissionais do golpismo mitificam e convocam o povo para que os ajude a destrui-lo.
Chegamos à segunda questão. O povo brasileiro não é uma massa, como pensam os populistas, de direita ou de esquerda. Também não é um arquipélago de comunidades, como pensam os que seguem ideologias libertárias ou distópicas e não gostam de política. O povo constitui uma sociedade, da qual fazemos parte, todos nós, com nossos diferentes valores, interesses e inserções. Damos vida a instituições democráticas, nas quais fazemo-nos representar, unidos pela noção de que é melhor viver na liberdade pacífica do que sob a opressão da guerra civil.
Então, defender o povo não é heroísmo ou sacrifício e sim um gesto de autopreservação. O povo brasileiro não é obra divina, nem ideológica. Somos obra da política! Para nos defender, como povo, é preciso defender a política, com muita firmeza e sem vestígio de culpa.
Acho importante refletir sobre o tipo de perigo que nos ronda, o perigo da destruição. Por causa dele é preciso pensar duas vezes antes de desejar qualquer tipo de faxina. Manter nossas consciências distantes da ideia de que pode existir qualquer bem que nos livre de todo o mal.
Refletir para que paremos de pensar no Congresso ideal ou no STF ideal e passemos a entender que é preciso defender o Congresso e o STF que temos. Para que compreendamos a necessidade de preservar a democracia, o país e o mundo que temos, com as suas virtudes e os seus pecados, que, afinal, vinculam-se ao fato de serem criações humanas. Não há como querê-los limpos e perfeitos sem sacrificar a nossa própria humanidade.
Como dizer essas coisas a pessoas desprovidas de formação e informação política? Assistindo a uma entrevista no programa Roda Viva, tive um primeiro contato virtual com um dos youtubers relevantes que atuam nessa arena digital. Penso que é gente tão relevante para a comunicação política quanto são relevantes os sanitaristas no combate à pandemia. A sociedade precisa muito deles para superar pandemônios. A política democrática precisa conversar muito com uns e com outros. Falar e ouvir. Ensinar e aprender.
Ao mesmo tempo a sociedade vai precisar de política, sempre, para que youtubers e sanitaristas não se tornem novos mitos opressivos e para que se deixem contaminar, benignamente, pela racionalidade da política democrática. Essa sim, é imprescindível.
* Cientista político e professor da UFBa.
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