Para historiadora Joan Scott, EUA sob Trump vive como na era do macarthismo
Por Helena Celestino | Eu & Fim de Semana / Valor Econômico
Quando Donald Trump foi eleito, a historiadora Joan Scott começou a sentir-se ansiosa, com medo de ameaça indeterminada, ao acompanhar medidas do novo governo dos EUA. “Era, de alguma maneira, o retorno do que estava reprimido, não só para mim, mas para o país inteiro”, escreve ela em artigo sobre como a direita fez da liberdade de expressão uma arma.
Era como se o macarthismo (1950-1957) tivesse voltado: naquela época, quando ela tinha 10 anos, seu pai, professor orgulhoso do seu trabalho, foi demitido por recusar-se a dizer se era ou não comunista, em nome da defesa da liberdade acadêmica. Passaram-se sete décadas até professores voltarem a entrar na mira da extrema-direita americana. “A expertise do conhecimento está sob ataque”, diz.
Historiadora, professora de Princeton, autora de livros, Joan Scott, de 78 anos, é uma feminista aclamada como uma das criadoras do conceito de gênero.
Valor: A senhora diz, em artigo, que a direita transformou em arma a liberdade de expressão. Como isso vem acontecendo?
Joan Scott: A Primeira Emenda impede punição ao discurso de ódio, mas a definição da liberdade de expressão foi muito ampliada, é sem limite. Se falo sobre a Revolução Francesa ou sobre a teoria de gênero, em um curso, um estudante pode dizer: “Não, acho que a hierarquia entre os sexos foi feita por Deus”. Ele tem o direito, mas se dou uma nota baixa por causa disso, limito o seu direito de livre expressão. Ou seja, a verdade não é mais levada em conta nessa ideia de “free speech”. A liberdade de expressão é boa, mas a Constituição diz que é o Estado que não pode negar esse direito aos cidadãos, é uma relação entre o Estado e os cidadãos. Num curso, isso não pode contar. Sou a autoridade.
Valor: No artigo, a senhora descreve como Trump mirou intelectuais e professores para reduzir a liberdade na academia. Ao fim do governo, o que ocorre com as universidades?
Joan: A expertise do conhecimento está sob ataque. A competência dos professores para ensinar está sob ataque, a ideia é que as salas de aula são instrumentos politizados por professores e alunos. No começo, o descrédito era para as ciências sociais e humanas, para cursos de literatura ou de estudos sobre a mulher. A briga era sobre se esses cursos só expressam a opinião dos professores e não são científicos. Agora, mesmo medicina e biologia são contestados: se os cientistas dizem que a cloroquina não é boa para a saúde, não são levados a sério. Bom, Trump já mandou usar água sanitária contra o coronavírus. Na vida cotidiana, as pessoas que atacam a ciência têm mais legitimidade. As aulas de justiça social, com olhar para as estruturas de discriminação da sociedade, são chamadas de propaganda. São deslegitimadas.
Valor: A senhora ficou surpresa com a força do conservadorismo?
Joan: Sim e não, porque vivi o macarthismo nos anos 50 nos EUA. Vivi esse momento de ataque aos intelectuais e a todos os tipos de crítica. Já tinha essa experiência. Acho que estamos vivendo a mesma coisa que nos anos 50.
Valor: Os dois momentos são comparáveis?
Joan: Sim, mesmo que existam grandes diferenças. Não existe um personagem que faz listas negras, mas, em Berkeley, há um professor, voz importante da extrema-direita, que fez uma lista de 101 professores considerados antissemitas porque criticam a política israelense atual. Tentou demitir os que criticaram o caminho tomado por Israel e os que apoiaram movimentos como Black Lives Matter. Em todos os lugares existem pessoas que atacam professores que dão cursos sobre justiça social ou com críticas ao momento político nos EUA. Os cursos de gênero, ideia crítica que analisa as relações de força das mulheres, são taxados de propaganda comunista. A Igreja Católica não aceita a ideia de que gênero é produzido na história, e não só um fato biológico. É a maneira de silenciar as vozes críticas que poderiam mudar a organização da sociedade e torná-la mais igualitária.
Valor: O discurso de ódio de Trump mudou muito a vida política americana?
Joan: Acho que foi a Presidência de [Barack] Obama que reabriu a questão de raça. Com ele como presidente, os brancos reforçaram suas posições racistas, sentiram medo de perder seu lugar de superioridade em relação aos negros na sociedade. Foi Trump que explorou esse medo e deu permissão aos racistas de se exprimirem, dizerem coisas inaceitáveis. Antes, podiam se mostrar racistas na família ou em privado, mas não em público. Um jornalista da “The Atlantic” escreveu que Trump é o primeiro presidente branco, querendo dizer que encarnou a ideologia da supremacia branca e liberou as pessoas para exercerem seu racismo, fazer coisas inaceitáveis contra os afro-americanos. A libido racista escapou com Trump. Foi o fim do politicamente correto, que silenciava o verdadeiro sentimento das pessoas em relação a raça, gênero, colonialismo.
Valor: Como a senhora vê os protestos do Black Lives Matter?
Joan: Estou no Maine, terra de pescadores com 3 mil habitantes. No verão, pessoas como eu aparecem, e muitos aposentados moram aqui. Depois do assassinato de George Floyd, a população local colou cartazes do Black Lives Matter. Outro dia passei em frente a uma casa e estava escrito “White Lives Matter, All Lives Matter” (Vidas Brancas Importam, Todas as Vidas Importam). Essa família foi ficando mais raivosa, e ontem tinha o cartaz “Ninguém liga para a gente, só querem saber dos negros”. A casa mostra que é uma família de trabalhadores que, é verdade, sentem que ninguém se importa com eles. É questão de classe: ele é branco, classe trabalhadora, achava que Trump ia cuidar dele, que expressa a sua raiva. Esse cartaz mostra que o que acontece é raiva visceral, ansiedade racial de os políticos agora só cuidarem dos negros. A primeira vez que li, fiquei com raiva, porque era um cartaz enorme, rabiscado: todas as vidas contam, mas a questão é que a vida dos negros nunca foi importante para os políticos na sociedade americana e para a polícia. Essa família odeia a atenção dada aos negros porque para ela continuam não ligando. Isso explica a maneira como a direita usa essa noção para agrupar a raiva da classe trabalhadora branca contra negros. É parte do jogo dizer que não os levam em conta, ninguém se preocupa com eles.
Valor: A senhora já vê mudanças concretas?
Joan: Sim, nos controles da polícia. Em Mineápolis, cidade onde Floyd foi assassinado, o conselho da prefeitura decidiu mudar a organização da polícia. Nesta semana, muitos policiais pediram aposentadoria porque não querem mais trabalhar lá. Outros telefonaram dizendo que estavam doentes. A força da polícia diminuiu, a mudança da forma de atuação da polícia vai ser replicada nas grandes cidades. É importante que o conflito seja lançado, não se pode dizer que isso já mudou a polícia, mas a tentativa de mudança começou. Haverá conflitos muito difíceis antes que a verdadeira mudança chegue.
Valor: Há semelhanças dos protestos atuais com os de 1964 nos EUA e 1968 na França?
Joan: Pessoas como Alexandria Ocasio-Cortez [congressista democrata] são importantes, se exprimem de maneira crítica, não sei como avaliar a reação do cidadão médio americano. É verdade que esses protestos representam possibilidade de mudanças profundas, é momento de esperança trazido por esses movimentos, protagonizados sobretudo pelos jovens negros e brancos. Não falam só do racismo, mas da estrutura racista da sociedade americana.
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