A derrubada de monumentos foi compreensível
‘É uma campanha impiedosa para acabar com nossa história, apagar nossos valores e doutrinar nossos filhos”. Apoplético e demagógico, o presidente Trump, em momentos recentes, apostrofou os “fascistas de esquerda que tentam profanar nossos monumentos.”
Menos, Trump, menos. O fascismo foi uma invenção — e é um patrimônio — das direitas. Além disso, vossos valores e filhos estão bem defendidos pela força das tradições e do arsenal atômico estadunidense.
Seria razoável recuperar a calma e compreender o que está acontecendo.
O sinal de partida da atual onda contra imagens e estátuas foi dado por manifestantes ingleses em Bristol, que atacaram a estátua do nada venerável Edward Colton, um cruel e infame traficante de escravos. Derrubaram-na do pedestal, arrastaram-na pelas ruas e a jogaram no rio, sem nem indagar se o pobre diabo sabia nadar. A notícia incentivou grupos diversos em várias partes do mundo. De acordo com suas preferências e critérios — ou a arrepio de qualquer critério —, começaram a derrubar, a pichar e a vandalizar mármores e granitos.
Nos Estados Unidos, vários generais e lideranças escravistas foram apeados dos respectivos pedestais. A ira alcançou George Washington e Thomas Jefferson e até mesmo Cristóvão Colombo. Em Londres, quiseram pegar Winston Churchill, protegido — e ocultado — por um tapume de madeira. Em Portugal, sobrou para o padre Antônio Vieira. Na França, Voltaire e Colbert, por motivos bem diferentes, tiveram que se haver com a ira popular.
Trata-se de uma história velha como a Humanidade.
Em bem-humorado texto, José Carlos Bom Meihy resgatou o costume antigo entre os humanos de atacar e destruir esculturas, ídolos, quadros, placas de rua e todo tipo de símbolos, odiados por se referirem, defenderem ou glorificarem uma ordem, um tempo, um regime ou uma personalidade que, venerados, em algum momento, por uns, são ou passaram a ser considerados indignos por outros. Há de se convir que, muita vez, a ira dos iconoclastas tem bons motivos.
Na Comuna de Paris, em 1871, foi impossível segurar os revoltosos que desejavam destruir certos ídolos da tirania. Nas revoluções sociais vitoriosas, ou em rebeliões populares antes de serem sufocadas, registraram-se semelhantes ataques. Na Rússia, A. Lunatcharski, o comissário da Educação, fez o possível —e fez bem — para evitar a depredação do Palácio de Inverno, uma joia da arquitetura. Verdade que foi erguida pelo sangue e o suor — e a vida — de servos humilhados e era sede de um regime detestado. Mas sua preservação encantaria — como encantou — as gerações seguintes. Foi compreensível, contudo, a derrubada de alguns monumentos que celebravam os responsáveis por uma tirania que agora vinha abaixo depois de séculos de opressão.
Nos dias atuais, como exigir dos negros estadunidenses complacência com homens que protegiam ou celebravam o racismo? Como querer que os povos africanos libertados mantivessem as avenidas e ruas das cidades com nomes de chefes colonialistas que exterminaram seus avós? Haveria que censurar os soldados soviéticos que destruíram as estátuas nazistas quando tomaram Berlim? Ou reclamar dos povos da Europa Central que puseram no chão as imagens de Stalin, quando conseguiram se livrar da dominação soviética? Quando, e se, os norte-coreanos se libertarem da nefanda dinastia fundada por Kim Il-Sung, quem reclamará do povo se resolver destruir a feia e cafona estatuária erguida em homenagem a seus feitos?
O mais recomendável, sem dúvida, seria a remoção dos execrados símbolos para museus, para serem estudados como manifestações de épocas e de valores superados. Foi o que se fez na Hungria: nas cercanias de Budapeste, instalaram-se as estátuas do regime ditatorial vencido. Ali repousam e podem ser conhecidas pelos que se interessarem por suas aventuras e pelo desditoso tempo em que dominavam.
De resto, como bem lembrou José Eduardo Agualusa, só tiranos e maus políticos gostam de estátuas. E só os pombos derramarão lágrimas pela sua remoção.
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