Criança de 10 anos, estuprada desde os 6, teve de viajar de Vitória a Recife para interromper gravidez
A história cruel da menina de 10 anos que engravidou, abusada pelo próprio tio no Espírito Santo, é ainda mais perversa pela dificuldade atávica do Brasil para lidar com o tema e fazer cumprir a lei. O país parece ignorar uma realidade repulsiva, mais comum do que se pensa. Quase 90% dos casos de violência sexual contra crianças e adolescentes ocorrem no ambiente familiar, de acordo com dados apresentados ano passado ao Congresso pela Ouvidoria Nacional do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos.
Se o Brasil falha em proteger crianças e adolescentes, fracassa também em agir nos casos de violência sexual. O episódio da menina é exemplar. Em contraste com outras democracias, a legislação brasileira é restritiva em relação ao aborto. Só o permite em três situações: estupro, quando há risco de vida para a gestante e em caso de feto anencéfalo. Uma gestação aos 10 anos de idade configura estupro incontestável e risco flagrante à vida da mãe. A lei deveria tão somente ser aplicada. Desnecessariamente, contudo, levou-se a questão à Justiça. O juiz que analisou o caso destacou em seu despacho, favorável à interrupção da gravidez, que o pedido era prescindível.
Em circunstâncias em que as condições físicas e psicológicas da menina são as piores possíveis, ela foi levada para Vitória para ser submetida ao procedimento. A equipe se recusou a atendê-la, alegando idade de gestação avançada (22 semanas). A legislação (o Código Penal) não faz ressalva sobre isso. Do ponto de vista legal, o argumento não se sustenta. Qualquer médico tem direito de se recusar a fazer um aborto, mas o hospital deveria ter chamado outra equipe. A solução encontrada foi ainda mais desgastante: levá-la para Recife, a 1,8 mil quilômetros. Impressiona a falta de sensibilidade ao lidar com uma menina traumatizada, abusada desde os 6 anos pelo tio, foragido.
O rosário de crueldades não terminou aí. Internada para submeter-se ao aborto, que ocorreu ontem, a menina foi vítima também de pressões de grupos que cercaram o hospital, hostilizaram os médicos e o diretor. Uma das responsáveis por divulgar o nome completo e o paradeiro dela — atitude ilegal e irresponsável — foi a extremista de direita Sara Giromini, um dos alvos do inquérito contra fake news que tramita no Supremo.
A lei brasileira só admite aborto em casos excepcionais. Se algum caso pode ser considerado excepcional, é o da menina de 10 anos. Não há, aqui, espaço para debater a liberação do aborto (questão legítima noutros contextos). Trata-se simplesmente de cumprir o que determina uma lei em vigor há 80 anos.
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