terça-feira, 18 de agosto de 2020

Carlos Andreazza - O integralismo no poder

- O Globo

Movimento nunca deixou de estar entre nós

Culto à personalidade. Estímulo à compreensão messiânica da liderança. Forja de inimigos artificiais. Discurso autocrático, antiliberal e anticomunista, de fé nacionalista, embocadura cristã e musculatura miliciana para o confronto. Fetiche com a projeção fálica de uma intervenção militar. Constituição de uma máquina panfletária para difundir teorias conspiratórias. Críticas doutrinárias à democracia, propositalmente confundida com o (criminalizado) establishment e entendida mesmo como empecilho; sendo necessário — em nome de uma nova política — destruir os padrões viciados da atividade político-partidária.

A que me refiro? Estarei incorrendo em repetição, mais uma vez esmiuçando o caráter da revolução reacionária bolsonarista? Sim e não.

Sim; porque esses elementos compõem o sistema de crenças do bolsonarismo, com sua pulsão de morte e a incapacidade de lidar com a liberdade senão como condição para impor os próprios modos. E não; porque me dediquei a listar somente estandartes do “Estado integral” segundo a doutrina do integralismo — o maior movimento de extrema-direita da História do Brasil até hoje, cuja influência tem assento no governo Bolsonaro e integra o pensamento do dito grupo ideológico, que prefiro chamar de sectário, aquele, poderoso, olavista, que toca a tal guerra contra o tal marxismo cultural.

Integralismo em 1932: algo novo — atraente para a juventude — numa sociedade intolerante (pautada pelo autoritarismo de Vargas) e amedrontada; o clima de medo (o perigo vermelho) impulsionando a adesão e o financiamento ao movimento. O ideal “Deus, pátria e família” encarnado no chefe nacional Plínio Salgado; o líder para o exercício do que seria uma democracia orgânica — que prescindiria das intermediações da democracia representativa.

Bolsonarismo em 2018: algo novo — sedutor para os jovens — numa sociedade intolerante (condicionada pelo espírito do tempo lavajatista) e amedrontada; o clima de medo (o Foro de São Paulo à espreita) impulsionando a adesão e o financiamento ao fenômeno. O slogan “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos” encarnado no mito Bolsonaro; aquele que fala diretamente ao povo, líder para o exercício do que seria uma democracia plebiscitária — que tornaria desnecessária qualquer mediação político-institucional.

Em 1969, o integralismo — obcecado pelo controle das formações individuais — seria o agente político que implementaria a disciplina de Educação Moral e Cívica no país. Em 2020, o integralismo domina — não à toa, como base estratégica para a reconstituição de uma fantasiosa civilização brasileira —o Ministério da Educação; e também a pasta dos Direitos Humanos.

O mais antigo alerta — ao menos para este escriba — sobre as semelhanças entre o bolsonarismo e a tradição integralista foi do publicitário Alexandre Borges, notável conhecedor da dinâmica política dos anos 1930, cuja natureza autoritária desaguaria na ditadura do Estado Novo. Ele me chamava a atenção para o caráter militarista do integralismo — aliás, muito aderente entre militares — e para a importância, no esquema do movimento, da milícia integralista, que conjugava serviço de informações e planejamento para operações policiais; que, na prática, resultaram em ações armadas tanto quanto nos fundamentos do que seria a Lei de Segurança Nacional.

Ainda no final de 2017, diante do fosso de oportunidades aberto pela depressão política que nutria discursos que costuravam elogio à autoridade e desprezo à atividade político-partidária, Borges informava que estudar apenas a emergência do nacional-populismo nos EUA e na Europa, embora necessário, não bastaria; e que seria mesmo preciso olhar para dentro, para a história do integralismo, a experiência fascista brasileira, com seu ímpeto para o golpismo, se quiséssemos compreender o conjunto de valores reacionários — cultura enraizada em quase século — que anima e lastreia o bolsonarismo. (E que não nos enganemos sobre a guinada circunstancial — com objetivo em 2022 —que leva Bolsonaro a uma quadra mais populista que autoritária.)

Há dois livros novos a respeito na praça. “O fascismo em camisas verdes”, de Leandro Pereira Gonçalves e Odilon Caldeira Neto, publicado pela FGV Editora. E, pela Planeta, “Fascismo à brasileira”, de Pedro Doria. São trabalhos fundamentais, muito bem pesquisados (o de Doria, ademais, um thriller), que tiram da estante do exotismo, como se passagem irrelevante de nossa história, um movimento que — desde a década de 1930 — nunca deixou de estar entre nós; muito articulado, por exemplo, tanto à TFP quanto aos skinheads brasileiros, cujo tripé misoginia, racismo e homofobia é facilmente identificado no DNA do que se convencionou chamar de nova direita no Brasil.

Duas obras que retratam o integralista como uma espécie de soldado de Deus e da pátria, responsável pela construção de uma grande nação; o que seria destino indesviável deste país. Não é uma fotografia de época.

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