terça-feira, 18 de agosto de 2020

Crise reforça a urgência da reforma administrativa – Editorial | Valor Econômico

O governo gasta o equivalente a 13,7% do PIB com pessoal, o dobro das despesas com educação

Enquanto 66 milhões de brasileiros se agoniam pensando em como vão sobreviver quando terminar o pagamento do auxílio emergencial de R$ 600 distribuído pelo governo, que evitou que mergulhassem na miséria no início da pandemia do novo coronavírus, 760 desembargadores de São Paulo pleiteiam ao governo estadual aumento de salários, que giram em média em torno de R$ 39 mil mensais líquidos. Não se discute que não devam ser bem remunerados os desembargadores, mas é falta de sensibilidade reivindicar reajuste de 50% nas despesas de pessoal da categoria, que já são elevadas, em momento de extremas dificuldades para a população e da necessidade de aperto fiscal.

O episódio só reforça os argumentos a favor da necessidade urgente da reforma administrativa. Logo após a aprovação das novas regras da Previdência, no ano passado, a promessa era de que essa reforma seria a próxima. O governo chegou a dizer, no início do ano, que a proposta estava pronta para ser enviada ao Congresso. O presidente da Câmara, Rodrigo Maia, é um de seus apoiadores, embora políticos experientes alertassem que as eleições municipais pudessem ser um empecilho. Os servidores públicos constituem uma categoria forte e bem articulada na defesa de seus interesses. No entanto, o presidente Jair Bolsonaro deu todos os sinais de que pretende empurrar essa tarefa para não se sabe exatamente quando.

Especialistas dizem, porém, que já passou da hora da mudança e que o momento é o ideal, dada a previsão de que mais de um terço dos servidores federais devem se aposentar até 2034. A renovação dos quadros poderia ser feita sob as novas regras, mais racionais e modernas. Apesar de o projeto do governo não ter sido divulgado, um dos detalhes que vazou é que as mudanças só valerão para os novos contratados. Outras alterações incluem o fim da estabilidade, provavelmente com algumas exceções, e a revisão dos métodos de avaliação.

O ex-presidente do Banco Central (BC), Armínio Fraga, um dos defensores da reforma administrativa, argumenta a necessidade de se melhorar o atendimento à população. Entre os pontos que considera importantes alinha a necessidade de se avaliar o desempenho dos funcionários, após o treinamento adequado, como em uma empresa privada, em modelos de comitês que garantam a impessoalidade. Considera também imperiosa a racionalização das carreiras, que hoje são “milhares” e devem ser simplificadas e alinhadas para transparência e comparação da remuneração e desempenho. Ainda hoje a folha de salários pública inclui linotipistas e datilógrafos.

Fato pouco comentado é a desigualdade entre os funcionários públicos apontado pelo economista Ricardo Paes de Barros, em que o topo tem um salário muitas vezes acima do teto constitucional, muitas vezes graças a penduricalhos, e a base ganha bem menos.

Para Fraga, fica em segundo plano o ganho fiscal que o governo pode auferir com a reforma administrativa. No entanto ele existirá, o que é uma boa notícia diante do atual aperto. Em um momento em que também se discute a necessidade da reforma tributária parece racional saber quanto se pode economizar nos gastos para dimensionar a necessidade de receita. As despesas com pessoal não são modestas e chegam a representar 80% dos gastos públicos nos Estados.

Segundo levantamento do Instituto Millenium, em conjunto com o Octahedron Data Experts, o governo gasta o equivalente a 13,7% do Produto Interno Bruto (PIB) com pessoal, o dobro das despesas com educação. Esses recursos beneficiam uma parcela de 18% da população ativa, ou 11,4 milhões de pessoas, número que dobrou nos últimos 30 anos.

Em comparação baseada em dados de 2018 do Fundo Monetário Internacional (FMI), o Brasil está em sétimo lugar entre 80 países que mais gastam com o funcionalismo em relação ao PIB, tendo à sua frente geralmente nações bem mais ricas em termos per capita como a Dinamarca e Noruega, mas também África do Sul e Arábia Saudita. O Brasil gasta mais que vizinhos, como Colômbia e Chile, e também que Portugal, França e Alemanha.

Há ainda uma grande distorção em relação ao setor privado, com o servidor público ganhando 240% a mais em cargos similares (O Globo 12/8). No funcionalismo federal, o salário de ingresso em uma função de nível superior equivale a quase quatro vezes mais do que no setor privado, distorção que cresce exponencialmente no tempo com gratificações, promoções por tempo de serviço e os famosos penduricalhos.

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