terça-feira, 18 de agosto de 2020

Pablo Ortellado* - Ativismo antiaborto

- Folha de S. Paulo

Ativismo antiaborto não reverbera em público conservador que viu nuances em caso de estupro de menina de 10 anos

Muitos progressistas ficaram assustados e perturbados com a mobilização de ativistas cristãos que foram à porta do hospital da universidade de Pernambuco protestar contra o aborto da menina de dez anos que engravidou após ser estuprada por um tio.

A menina não conseguiu fazer em Vitória o procedimento, que é permitido pela lei brasileira em caso de estupro e risco de vida para a mãe, e precisou se deslocar até o Recife.

Ativistas cristãos descobriram onde o aborto iria ser realizado e foram à porta do hospital para protestar e orar. Em seguida, um grupo de feministas também se mobilizou para fazer uma contraofensiva em defesa do direito ao aborto. A menina, ao final, conseguiu interromper a gravidez.

Chama a atenção o quanto o caso chocou a esquerda, que reagiu indignada, e o quão pouco mobilizou a direita --pelo menos se usarmos como parâmetro os compartilhamentos no Facebook. Na plataforma, os posts indignados da esquerda geraram 205 mil compartilhamentos, enquanto os posts de mobilização da direita não alcançaram 7.000.

A desproporção entre ação e reação faz pensar o que incomodou os progressistas e o que desmotivou os conservadores.

Uma parte da força da reação dos progressistas se deve, sem dúvida, à gravidade do abuso —o fato de a menina ter sido estuprada desde os seis anos pelo tio, engravidando aos dez.

O episódio chocante levantou questões. Será que nem mesmo na circunstância extrema em que uma criança de apenas dez anos seria forçada a dar à luz um filho do seu violador os conservadores conseguem transigir? Se mesmo neste caso, em que a lei se aplica sem controvérsias, uma mulher não consegue fazer um aborto, o que esperar em relação aos demais casos?

A força da reação parece se dever também ao modo incisivo de atuação dos ativistas conservadores, que divulgaram dados de uma menor de idade, fizeram um bloqueio na porta do hospital, confrontaram médicos e os chamaram de assassinos.

O que gerou indignação nos progressistas parece ter sido o contraste entre a determinação inflexível dos ativistas antiaborto e a complexidade da situação que envolvia a gravidez de uma criança muito nova, vítima de estupros sucessivos.

A baixa repercussão do caso no campo conservador, porém, sugere que, embora os ativistas antiaborto não tenham visto nuances, seu público parece que viu.

Isso não traz nenhuma esperança de entendimento sobre o direito ao aborto, que costuma ser o mais divisivo dos temas políticos. Mas mostra que, apesar da determinação dos soldados das guerras culturais, ainda existe espaço para prevalecer algum bom senso.

*Pablo Ortellado, professor do curso de gestão de políticas públicas da USP, é doutor em filosofia.

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