Ano
de 2021 começará sob a égide da incerteza, derivada da cegueira ideológica de
Bolsonaro sobre vacinas
Desde
que a primeira morte por Covid-19 foi confirmada no mês de março em São Paulo,
as atitudes e declarações do presidente Jair Bolsonaro negam a gravidade da
doença, desorientam a população e acabam por ter um efeito colateral perverso
na economia. Ao dizer que não tomará vacina, ao insinuar efeitos adversos
inexistentes e ao contribuir para aumentar a resistência à vacinação entre os
brasileiros, Bolsonaro amplia o risco de que a recessão provocada pela pandemia
se prolongue ainda mais.
O
preço em vidas continua a aumentar dia após dia. Enquanto o número de mortes se
aproxima dos 200 mil, o desemprego atingiu a taxa recorde de 14,6% da população
ativa no terceiro trimestre, ou 14,1 milhões. Bolsonaro continua a insistir que
a culpa pela paralisia econômica cabe às medidas de contenção, como
distanciamento ou uso de máscaras, não à insegurança trazida por um vírus
insidioso que põe todos sob o risco de morte. Seu grau de incompreensão da
realidade — como, de resto, o de boa parte dos empresários e políticos
brasileiros — é aterrador.
É
triste que tantos ainda creiam em delírios comprovadamente falsos, como os
poderes mágicos da cloroquina e de vermífugos, ou que a esta altura ainda citem
a estratégia sueca da “imunidade de rebanho” como modelo de preservação da
atividade econômica. Dias atrás, o próprio rei da Suécia, Carl XVI Gustaf,
admitiu que o país “fracassou”. O número de mortos por lá ultrapassa a soma dos
vizinhos Dinamarca, Noruega e Finlândia, mais rígidos nas medidas preventivas,
por isso com perspectivas melhores na economia.
A saída para a crise que se abateu sobre o planeta é conhecida: a vacina, justamente aquilo que Bolsonaro desdenha. Quanto mais a vacinação em massa demorar, mais estagnada a economia ficará e maior o risco de uma nova recessão (basta ver o fuzuê que tomou conta dos mercados quando uma nova linhagem do vírus pôs em dúvida a eficácia dos imunizantes disponíveis).
A
própria equipe econômica sabe disso. Em encontro com investidores
internacionais, o presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, disse ser
mais barato vacinar a população do que estender o auxílio emergencial. Não é
uma visão só financista. A vacina é a única ferramenta capaz de erradicar
epidemias salvando vidas.
Por
influência de Bolsonaro, porém, tudo atrasou no Brasil: encomenda das vacinas,
seringas, agulhas e outros materiais. A guerra política com o rival João Doria
em torno da CoronaVac, produzida no Brasil pelo Instituto Butantan, aumentou a
ansiedade dos brasileiros, que assistiram pela televisão ao início da vacinação
nos Estados Unidos e no Reino Unido. O Supremo se viu compelido a intervir em
favor da vacinação obrigatória e da autonomia de estados e municípios para
promovê-la.
Uma
das cegueiras mais espessas é a ideológica, como tem demonstrado diuturnamente
a visão tacanha de Bolsonaro no decorrer de toda a pandemia. O ano de 2021
começará sob a égide da incerteza em relação à vacinação. O próprio Bolsonaro
pagará o preço político se a recessão for prolongada.
Cidades
ainda estão despreparadas para crescimento súbito de ciclistas – Opinião | O
Globo
Pandemia
fez explodir a venda de bicicletas no país. Aumentar a segurança nas ciclovias
é desafio
O
aumento no número de bicicletas nas cidades tem se revelado um efeito saudável
destes tempos de pandemia. Segundo a Associação Brasileira do Setor de Bicicletas
(Aliança Bike), as vendas nos meses de setembro e outubro registraram aumento
de 64% em relação ao mesmo período do ano passado. Em julho e agosto, os
negócios foram ainda melhores, com crescimento de até 114%.
Uma
explicação para a tendência está relacionada ao risco de contágio pelo novo
coronavírus e às restrições impostas pelas autoridades de saúde. Com academias
fechadas durante meses, muitos procuraram manter a forma em atividades ao ar
livre. Ao menos nos pequenos trajetos, a bicicleta passou a ser também uma
opção ao transporte público, onde aglomerações são quase inevitáveis.
Mas
nem tudo gira à perfeição nesse mundo de duas rodas. Grandes cidades como São
Paulo ou Rio construíram vasta malha de ciclovias e ciclofaixas, mas não
conseguiram torná-las seguras. A expansão parece ter sido motivadas mais pela
visibilidade política do que pela necessidade real de uma população que sofre
com a deficiência de transporte no dia a dia e não tem como trocar o ônibus
pela bike simplesmente porque apareceu uma ciclofaixa.
O
atropelamento e morte da ciclista Marina Kohler Harkot, de 28 anos, numa
ciclovia na Zona Oeste paulistana na madrugada de 8 de novembro, chocou a
cidade e revelou como a segurança dessas vias é precária. Marina, que
coordenava a Associação de Ciclistas Urbanos de São Paulo, era uma defensora
árdua da atividade. Infelizmente, não foi caso isolado. Entre janeiro e
outubro, 17 ciclistas morreram nas vias do Distrito Federal. A relação entre
ciclistas e motoristas é selvagem — e trágica.
Não
se pode esquecer que o governo de Jair Bolsonaro flexibilizou as normas de
trânsito e, entre outras medidas, aumentou de 20 para 40 a pontuação necessária
para cassação da carteira de habilitação. Deu a infratores contumazes a chance
de cometerem o dobro de barbaridades ao volante.
Não
basta construir ciclovias ou pintar faixas de vermelho em avenidas movimentadas
achando que se oferece opção de mobilidade à população. Ainda que ciclistas
sejam um grupo minoritário, é preciso garantir-lhes segurança. Isso não se faz
apenas com boas intenções, mas com políticas públicas, campanhas educativas,
punição a quem descumpre a lei, adequação das ciclovias às normas de segurança.
O
aumento súbito das bicicletas durante a pandemia pode ser uma oportunidade para
que as cidades trabalhem por um trânsito mais amigável, em que carros, motos,
ônibus, bikes — e pedestres, claro — convivam de forma civilizada. Tendo como
guia as leis de trânsito, não a lei do mais forte.
Reabertura segura das escolas – Opinião | O Estado de S. Paulo
Sempre,
mas especialmente durante a pandemia, a educação deve ser uma prioridade dos
gestores públicos
Entre os muitos desafios trazidos pela pandemia de covid-19, há um especialmente relevante, com consequências de curto, médio e longo prazos para toda a sociedade: a reabertura segura das escolas. Para auxiliar as novas gestões municipais nessa tarefa, o Todos Pela Educação lançou um documento com 25 recomendações para uma volta adequada às atividades escolares presenciais.
Dada
a diversidade dos municípios no País, não há uma fórmula única para o retorno
das aulas presenciais. O que se tem – e serviu de base para a elaboração das
recomendações – é uma série de evidências científicas, além das orientações de
organismos nacionais e internacionais. Sendo a preservação da vida a primeira
premissa, é essencial, por exemplo, seguir os protocolos sanitários.
Como
ponto de partida, o documento faz um diagnóstico do ensino remoto. Apesar do
esforço empregado para mitigar os efeitos do fechamento das escolas, o Todos
Pela Educação reconhece as sérias limitações do ensino remoto para a formação
das crianças e adolescentes. São quatro os principais efeitos negativos: (i)
graves lacunas de aprendizagem, (ii) ampliação das desigualdades educacionais,
(iii) aumento do abandono e da evasão escolar e (iv) impactos na saúde
emocional de alunos e profissionais da educação.
Diante
desse quadro, é necessário que as redes de ensino elaborem um plano capaz de
atenuar esses efeitos. A respeito do momento de reabrir as escolas, o documento
admite: “Essa definição (de
quando reabrir) é complexa, devendo partir de uma análise
multifatorial que considere os diversos riscos envolvidos”. O importante, diz,
é que “a Educação precisa receber prioridade em qualquer discussão sobre a
reabertura de setores da sociedade”.
As
25 recomendações estão organizadas em torno de três eixos: retorno seguro,
atendimento de todos e organização pedagógica em prol da aprendizagem.
Em
relação à reabertura segura do ponto de vista da saúde pública, o documento
destaca a necessidade de um planejamento de retorno gradual das atividades
presenciais em conjunto com a Secretaria Municipal da Saúde. Para essa
finalidade, é preciso, por exemplo, fazer um diagnóstico da infraestrutura física
das escolas, desenvolver um protocolo sanitário para a volta às aulas, prover
recursos financeiros adicionais às escolas e readequar serviços de limpeza,
alimentação e transporte escolar.
Diante
desse cenário novo, com muitas incertezas e perplexidades, o Todos Pela
Educação ressalta o caráter prioritário da comunicação. Para que seja possível
uma reabertura segura das escolas, é fundamental estabelecer uma comunicação
clara com a comunidade escolar.
No
segundo eixo, referente ao atendimento de todos, as recomendações são:
identificar os alunos que não voltaram às escolas, fixar estratégias de busca
ativa em parceria com outros órgãos, avaliar o potencial crescimento da demanda
por vagas e planejar a oferta, realizar o acolhimento socioemocional dos estudantes
e profissionais e assegurar a distribuição da merenda para os alunos mais
vulneráveis.
A
respeito da organização pedagógica, o documento propõe, como primeira medida,
avaliar o que se fez em 2020, tanto os objetivos de aprendizagem trabalhados
como a carga horária cumprida. A partir daí, definir os objetivos de
aprendizagem e habilidades essenciais do currículo a serem priorizados e
readequar o planejamento curricular envolvendo os anos letivos de 2020 e 2021.
Ou seja, cuidar da educação em 2021 envolve necessariamente não se esquecer do
que ficou faltando em 2020.
Outra
medida é o planejamento curricular no contexto de ensino remoto combinado com o
presencial. Ao menos por um bom tempo, essas duas modalidades de ensino
coexistirão. Nesse sentido, é preciso aprimorar a conectividade nas escolas,
bem como formar e apoiar os professores.
Sempre,
mas especialmente na pandemia, a educação deve ser uma prioridade dos gestores
públicos. Para tanto, não é preciso reinventar a roda. Basta trabalhar bem, com
as evidências científicas e orientações disponíveis.
Da
recuperação à arrecadação – Opinião | O Estado de S. Paulo
Retomada eleva receita de tributos e permite acerto de impostos diferidos
A
reação da economia, puxada pelo consumo e pela indústria, continua reforçando a
arrecadação federal, mesmo num cenário de alto desemprego e de muita incerteza
quanto ao próximo ano. O governo
recolheu em novembro R$ 140,101 bilhões, 7,31% mais que um ano
antes, descontada a inflação. Foi o maior valor arrecadado num mês de novembro desde
2014, quando a soma coletada pelo poder central chegou a R$ 142,286 bilhões.
Mas a arrecadação do mês passado foi engordada pelo recolhimento de R$ 14,770
bilhões de tributos diferidos no primeiro impacto da pandemia. O total
arrecadado em 11 meses, de R$ 1,320 trilhão, foi 7,95% inferior ao de
janeiro-novembro de 2019, também com valores ajustados pelo IPCA.
Dois
fatores principais favoreceram a arrecadação de novembro: a produção industrial
de outubro, 1,03% maior que a de igual mês do ano passado, e as vendas do
comércio varejista, com crescimento de 6% no mesmo tipo de comparação. O
principal fator negativo foi o fraco desempenho dos serviços, com vendas 7,40%
inferiores às de outubro de 2019.
O
setor de serviços começou a recuperar-se em junho, com defasagem de um mês em
relação aos outros dois setores. Além disso, o crescimento até outubro foi
insuficiente para o retorno ao patamar anterior à queda ocasionada pela
pandemia. Depois de uma perda de 19,8%, o ganho acumulado até a última apuração
foi de apenas 15,8%. Antes disso, indústria e comércio varejista já haviam
voltado a um nível superior ao de fevereiro. Para os dois setores o tombo
ocorreu em março e abril.
A
arrecadação federal de novembro parece ter surpreendido parte do mercado. O
valor recolhido foi superior à mediana das expectativas colhidas no mercado
pelo Broadcast, serviço de informação em tempo real da Agência Estado.
As projeções foram de R$ 115 bilhões a R$ 146 bilhões, com mediana de R$ 137,80
bilhões.
“Ainda
estamos otimistas com o resultado da arrecadação”, disse o chefe do Centro de
Estudos Tributários e Aduaneiros da Receita Federal, Claudemir Malaquias. “Os
números sinalizam trajetória positiva da arrecadação até o fim do ano”,
acrescentou. O volume de compensações dos tributos diferidos, comentou, mostra
contribuintes empenhados em liquidar os débitos. Até o fim do ano, segundo ele,
o Tesouro deverá completar a recuperação dos R$ 62,822 bilhões diferidos até
novembro.
A
liquidação desses compromissos indica a melhora de condições de parte
significativa das empresas. É um dado positivo para o governo e para o próprio
setor empresarial. Com isso, o horizonte pode parecer mais claro, mesmo com a
expectativa de retorno lento ao nível de atividade de 2019.
O
balanço de 2020 deve mostrar um Produto Interno Bruto (PIB) sensivelmente menor
que o do ano passado, com recuo de uns 4,40%, segundo projeções correntes. O
prosseguimento da retomada em 2021 deve ser insuficiente, pelas estimativas
atuais, para o retorno ao patamar do ano passado. Mas essa recuperação pode ser
mais complicada do que estimam o governo e vários analistas.
Primeiro,
é preciso ver o ritmo dos negócios. Em outubro a produção industrial superou a
de setembro por 1,1%. Foi o menor crescimento desde o começo da recuperação.
Também as vendas do comércio perderam impulso. Falta verificar como estarão
essas atividades nos primeiros meses de 2021. Comunicados do Banco Central (BC)
têm mencionado uma incerteza “acima da usual” em relação ao ritmo da economia
no próximo ano.
Em
segundo lugar há o risco de um novo surto de covid-19, já observado em várias
das economias mais avançadas. Com ou sem mutações do vírus, o risco de uma nova
onda é aumentado quando as pessoas se comportam de forma imprudente. A
expectativa de vacinação de nenhum modo autoriza a imprudência.
Mas
o maior fator de insegurança é o governo, até agora incapaz de exibir um
compromisso firme com a gestão responsável das contas públicas e com a condução
nacional de uma verdadeira política sanitária. Desses fatores, e especialmente
do terceiro, dependerão os negócios, o Tesouro e a saúde dos brasileiros.
Democracia latino-americana na enfermaria – Opinião | O Estado de S. Paulo
Ao
único regime não democrático da região, Cuba, juntaram-se outros três países
Após ser inundada por uma “terceira onda” de democratização desde os anos 80, na última década a democracia na América Latina deu sinais de erosão. Prova disso é que ao único regime não democrático da região, Cuba, juntaram-se outros três: Venezuela, Nicarágua e em certa medida a Bolívia (ao menos até as eleições de 2020). Além disso, os desafios econômicos após o superciclo das commodities, como crescimento lento, aumento da dívida pública e um espaço fiscal sob pressão, limitaram a capacidade de qualificar serviços públicos, reduzir desigualdades e promover mobilidade social.
Somem-se
a isso deformidades estruturais jamais solucionadas, como a alta taxa de
criminalidade, fragmentação e polarização política, corrupção e debilidade
institucional. As frustrações sociais culminaram em 2019 com a eclosão de
protestos, notadamente no Chile, Bolívia, Peru e Equador, e tudo indicava que
eles recrudesceriam, se não tivessem sido atropelados pela pandemia. Mas,
apesar das ruas vazias, há indícios de que as crises sanitária e econômica,
muitas vezes enfrentadas com um misto de incompetência e autoritarismo,
agravaram os riscos à democracia.
Em
um estudo sobre o Estado da
Democracia na América Latina, do Institute for Democracy and
Electoral Assistance, a mera enumeração das ameaças à democracia
latino-americana durante a pandemia é atordoante: adiamento de eleições; uso
excessivo da força nas quarentenas; uso das Forças Armadas em tarefas civis;
delinquência e violência persistentes; riscos ao direito à privacidade;
acentuação das desigualdades de gênero e violência doméstica; novos riscos aos
vulneráveis; acesso limitado à justiça; restrições à liberdade de expressão;
abuso dos Poderes Executivos; supervisão parlamentar reduzida; choques entre
instituições; novas oportunidades para a corrupção; e um eleitorado descontente
com as formas tradicionais de representação política.
O
Brasil ilustra vários desses sintomas: a superlotação de militares nos
gabinetes executivos; surtos de violência na disputa entre narcotráfico e
milícias; ataques verbais de autoridades (a começar pelo presidente) aos meios
de comunicação; enfrentamentos entre os Três Poderes e entre o governo federal
e os subnacionais na implementação de medidas sanitárias; e indícios de
corrupção na compra de equipamentos e medicamentos.
Todos
os indicadores mostram que a América Latina tardará mais que as regiões
desenvolvidas para superar a crise e retomar um caminho de estabilização social
e crescimento econômico. Essas dificuldades só avolumam os desafios monumentais
de uma região que já se mostrava defasada na adaptação a transformações
globais, como a 4.ª Revolução Industrial, as mudanças climáticas ou a
reconfiguração da globalização, imensamente abalada pelas tensões geopolíticas
entre EUA, China e União Europeia.
Não
obstante, é possível identificar também exemplos de resiliência e inovação
durante a pandemia. Várias nações, como o Brasil, conseguiram consumar seus
processos eleitorais em relativa normalidade. Para muitas cadeias produtivas, a
aceleração da digitalização trouxe uma injeção de ânimo e inovação. Mais
importante: as manifestações de solidariedade e cooperação em nível local
mostram que, sob o esgarçamento institucional e as tensões políticas, há focos
de cidadania suficientemente vigorosos para ativar um processo de revitalização
dos contratos sociais.
Não
há “atalhos” e “regressar às práticas do passado tampouco é uma possibilidade”,
conclui o estudo. “A única opção é impulsionar reformas ambiciosas para
melhorar os padrões econômicos e democráticos, baseados em um crescimento
equitativo, responsável, sustentável e inclusivo.” Naturalmente, isso demandará
um esforço redobrado dos protagonistas da arena pública para canalizar
protestos e conflitos em um debate construtivo. Se malograrem, “as alternativas
populistas ou autoritárias se imporão em uma região marcada pela insatisfação,
desemprego, delinquência, violência e corrupção”.
A Covid de cada um – Opinião | Folha de S. Paulo
Brasil
e EUA seguem receita oposta à dos mais bem-sucedidos no combate ao vírus
A
pandemia de Covid-19 se manifesta em múltiplas epidemias locais, de
características diferentes até num mesmo país. O balanço díspar de vítimas
sugere pistas de como se disseminou o coronavírus e de como enfrentá-lo.
As
Américas e a União Europeia, com seus quase 800 mortos por milhão de habitantes
até aqui, contrastam de modo gritante com os 71 mortos por milhão da Ásia, 45
da África e 23 da Oceania.
O
isolamento relativo, a juventude e a baixa mobilidade de certos países
africanos, bem como o peso do sucesso da China e de sua imensa população no
continente asiático, podem ser explicações vagas para fenômenos tão amplos.
Entretanto
há motivos específicos, derivados de providências no combate à epidemia, que
ajudam a explicar essas diferenças.
Estão
na Ásia alguns dos países que tomaram as medidas mais precoces, estritas e
organizadas de contenção. Taiwan impôs bloqueios internacionais ainda em
janeiro. Tinha um comitê profissional de combate a epidemias desde os surtos de
gripe do início do século, com planos específicos e autoridade para
executá-los.
Rastreou
possíveis doentes por meio de um sistema nacional de dados, testou, impôs
máscaras e quarentenas sob pena de multas pesadas. Havia confiança nas
autoridades e um senso comunitário de colaboração com as medidas sanitárias. O
país tem 0,3 morte por milhão de habitantes. O Brasil, 894.
O
método taiwanês descreve parte das providências de países mais bem-sucedidos.
Foi assim em China, Vietnã, Coreia do Sul, Japão, Singapura, Nova Zelândia e,
em menor medida, Austrália.
Países
da África, com poucos recursos, ligaram alertas precoces nas fronteiras e
souberam recorrer a planos de combate ao ebola a fim de conter também o
coronavírus.
Entre
os mais exitosos da América Latina (onde houve mais de 800 mortos por milhão),
Cuba e Uruguai seguiram parte do pacote taiwanês, como Finlândia, Noruega e
Dinamarca na Europa —porém com menos controle da vida privada e também menos
sucesso.
Organização
do sistema de saúde, comando técnico do combate de epidemias, autonomia de ação
para cientistas e profissionais de saúde, transparência do governo, confiança
da população e alerta precoce. Essa parece ser uma lista razoável de atitudes
exitosas.
Já
negacionismo, propaganda de crendices e sabotagens presidenciais marcaram a
conduta de países como Brasil, México e Estados Unidos, que se assemelham como
exemplos trágicos de mortandade.
O racismo de Lobato – Opinião | Folha de S. Paulo
Mostras
de preconceito em obras devem ser contextualizadas, não suprimidas
A
discussão sobre como lidar com o racismo nas obras infantis de Monteiro Lobato
parece infindável.
Há
oito anos, a proposta de sustar a distribuição de “Caçadas de Pedrinho” em
escolas públicas chegou ao Supremo Tribunal Federal. Agora, a reedição de “A Menina
do Narizinho Arrebitado” pela bisneta do autor provocou reações até
de membros um tanto ociosos do governo Jair Bolsonaro.
A
revisão de Cleo Monteiro Lobato procurou alterar ou suprimir “passagens
problemáticas”, como a que se referia a Tia Nastácia como “negra de estimação”.
Bastou
para que Sérgio Camargo, o presidente da Fundação Palmares que fez de sua marca
a oposição ao movimento negro, fosse às redes sociais para denunciar aquilo
como uma “mutilação politicamente correta”. Foi seguido por Mario Frias,
secretário da Cultura, que achou a mudança uma vergonha.
O
argumento central de Camargo, de que não há racismo na obra de Lobato, não se
sustenta. Não deixam dúvidas a construção estereotipada de Nastácia e as
menções à cor de sua pele como um defeito, por exemplo quando Narizinho diz que
ela “é preta só por fora, e não de nascença”.
Não
é por isso, contudo, que se deve defender que os trechos racistas sejam
simplesmente apagados dos livros do escritor.
Primeiro
porque a intenção de ajustar clássicos literários a um certo ideal político
será sempre infrutífera. Leitura assim encontrará o que corrigir em qualquer
obra de qualquer geração passada e corre o risco, além disso, de eliminar
sutilezas e contradições relevantes.
Em
segundo lugar, porque o exercício é fútil. A literatura tem, entre suas
funções, a de documento histórico de uma época e do pensamento de seu autor.
Alterar trechos, não importa por qual motivo bem-intencionado, causará
inevitável distorção do conteúdo.
A
meta de evitar que crianças encampem ideias preconceituosas é alcançável por
outros meios, como notas de contexto ou orientação de pais e professores.
Pode-se também escolher outra coisa para ler.
Em
canais de streaming, tem se tornado mais comum a adoção de avisos que alertam
para “cultura desatualizada”, antecipando que o filme mostrará práticas ou
discursos discriminatórios —o que suscita debate sobre certa infantilização do
espectador.
Ora, se uma obra reflete uma sensibilidade ultrapassada, é natural que seja logo esquecida. E se outras qualidades impedirem essa obsolescência, seus problemas continuarão sob o escrutínio saudável do debate público.
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