Depois
de dois anos de desgoverno, ainda resta o direito de desejar feliz ano novo
Desprezo
à vida, quase um culto à morte, é a grande marca do presidente Jair Bolsonaro,
afirmada e reafirmada em todo o seu desgoverno. Com a pandemia esse desprezo
ficou mais escancarado, assim como seu despreparo para governar. Enquanto
avança o contágio, o presidente chama de maricas quem tenta evitar a doença e
cobra menos ansiedade na espera pela vacina. O descaso pela vida se reafirma,
sem pausa, também na sua obsessão pelas armas. Pode-se morrer de bala ou de
covid-19. E daí? Essa pergunta, um comentário sobre a mortandade, resume dois
anos de Presidência bolsonariana – fiasco na economia, desastre na pandemia,
constante ameaça à democracia. Será um prenúncio dos próximos dois?
Liderança,
criatividade e solidariedade podem eclodir diante de grandes desafios. Diante
da pandemia, Bolsonaro foi negacionista, como seu guia Donald Trump. Continuou
centrado em objetivos particulares, como a reeleição e a proteção dos filhos.
Além disso, frequentou manifestações golpistas, como no dia 3 de maio.
Mais
de 100 mil casos de covid-19 haviam sido registrados e as mortes passavam de 7
mil, superando as da China, mas as prioridades do presidente eram outras. Na
passeata, faixas pediam o fechamento do Supremo Tribunal Federal (STF) e do
Congresso e “intervenção militar com Bolsonaro”. O presidente apareceu sem
máscara, abraçou uma criança e criticou medidas sanitárias de governadores e
prefeitos.
A
indisposição de Bolsonaro com o STF era notória. O ministro Alexandre de Moraes
havia suspendido a nomeação de Alexandre Ramagem para a direção da Polícia
Federal (PF). Sem dizer a quem se dirigia, o presidente berrou ameaças.
“Vocês sabem que o povo está conosco. As Forças Armadas, ao lado da lei, da ordem, da democracia e da liberdade, também estão ao nosso lado, e Deus acima de tudo. Vamos tocar o barco. Peço a Deus que não tenhamos problemas nesta semana, porque chegamos no limite, não tem mais conversa, tá OK? Daqui para frente não só exigiremos, faremos cumprir a Constituição. Ela será cumprida a qualquer preço.” Depois prometeu nomear no dia seguinte o novo diretor da PF.
Diante
de golpistas, o presidente ameaçou agir “a qualquer preço” e tentou envolver as
Forças Armadas – e para quê? Para sustentar sua pretensão de mandar na PF,
denunciada como inaceitável pelo ministro Sergio Moro. Como essa pretensão
nunca foi justificada, restava a hipótese muito comentada: era mais uma
tentativa de proteger os filhos.
O
interesse de um filho investigado, o senador Flávio Bolsonaro, seria o assunto,
meses depois, de um encontro com participação de Alexandre Ramagem, chefe da
Agência Brasileira de Inteligência (Abin), e do general Augusto Heleno,
ministro do Gabinete de Segurança Institucional (GSI). Dessa reunião
resultaram, segundo a revista Época, instruções para a defesa do senador,
acusado de rachadinhas durante o mandato como deputado estadual.
Ramagem
e Heleno confirmaram a reunião com a defesa do senador, mas negaram ter
produzido instruções. Além disso, qualificaram o encontro como legal, por ser
atribuição do GSI e da Abin cuidar da segurança do presidente e de seus
familiares. Mas isso inclui segurança contra investigação de rachadinha ou de
outro crime?
Bolsonaro
achou tempo para cuidar da reeleição. Meio por acaso, descobriu os pobres. A
descoberta ocorreu quando o ministro da Economia, no começo da nova crise,
propôs auxílio de R$ 200 para os mais vulneráveis. O presidente da Câmara
sugeriu R$ 500 e Bolsonaro, com aparente entusiasmo pelo novo jogo, defendeu R$
600.
Houve
bons efeitos e ele decidiu propor uma Bolsa Família – antes chamada de Bolsa
Farinha – com marca própria. Não deu certo, ainda, mas o presidente descobriu
as possibilidades de um novo eleitorado, e logo no Nordeste.
As
medidas emergenciais funcionaram, como em outros países, e atenuaram a crise,
mas deixaram enorme buraco fiscal. O mercado entende as novas condições e
apenas cobra um claro compromisso de seriedade nos próximos anos. Mas o
comportamento errático do presidente em relação às questões fiscais, somado à
sua política antiecológica, assustou o mercado, espantou investidores e
resultou em enorme depreciação cambial. No fim de outubro, só as moedas de
Zâmbia e do Suriname se haviam desvalorizado, em 2020, mais do que o real.
Inflação maior foi um dos efeitos.
A
economia já ia mal antes do novo coronavírus. Havia crescido só 1,6% em 2019,
depois de avançar 1,8% em cada um dos dois anos anteriores. O produto interno
bruto (PIB) do primeiro trimestre de 2020 foi 1,5% menor que o dos três meses
finais do ano passado. Só um projeto importante havia sido aprovado no primeiro
ano de mandato, a reforma da Previdência, já amadurecida no período do
presidente Michel Temer. Nenhuma das muitas privatizações prometidas foi
realizada até agora, e Bolsonaro acaba de se declarar contrário à venda da Ceagesp,
antes pautada com sua autorização.
Mas todos têm o direito de pelo menos desejar feliz ano novo a todos os demais – tão feliz quanto possível no Brasil de Bolsonaro.
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