É
duro imaginar que possa continuar a disfuncionalidade que o Brasil exibe ao
mundo
Na
campanha eleitoral de 2014, em discurso feito para a militância do PT, Lula
afirmou que já se via “com Dilma, em 2022, nas comemorações dos 200 anos da
nossa independência, defendendo tudo o que haviam conseguido conquistar nos
últimos 20 anos”. Referi-me a essa fala de Lula na abertura do artigo publicado
neste espaço há exatos seis anos, Quadriênios: velhos e novos. Apontei
então que é perfeitamente legítimo qualquer pessoa expressar de público suas
“memórias do futuro”, a bela expressão de Borges para caracterizar desejos,
expectativas, sonhos e planos.
Antes
de chegar às eleições de 2022 haveria, no entanto, que vencer em 2018. Era
óbvio que já não seria fácil explicar, então, as conquistas dos “últimos 16
anos” (2002-2018) como se fossem um período singular, um todo coerente, como
havia feito a marquetagem política em 2014 a propósito dos “últimos 12 anos”.
Porque Lula 1 foi diferente de Lula 2; Dilma 1, diferente de Lula 2; e
(afirmei) Dilma 2 seria muito diferente de Dilma 1, “e o mais difícil dos quatro
quadriênios”. Como escrevi à época, “quem viver verá, ou já está vendo”.
Quem
viveu viu até mesmo as consequências – notadamente a vitória de Bolsonaro em
2018 e o início de outro problemático quadriênio. Volto ao tema de
“quadriênios”, agora a propósito de Trump e Bolsonaro. Este último estará agora
privado de sua fonte inspiradora e modelo de comportamento. O quadriênio de
Trump terminou de facto na primeira semana de novembro, com as claras
evidências da vitória de Biden.
Contudo parte expressiva dos 74 milhões de americanos que votaram em Trump acredita ter havido fraude eleitoral; que Trump fez bem em se recusar a reconhecer o resultado das urnas. “Frankly, we won” foi o tuíte com que se declarou vencedor na madrugada de 4 de novembro, quando ainda faltavam milhões de votos a contar, em vários Estados-chave. Advogados a seu serviço ajuizaram dezenas de ações nesses Estados, enquanto o candidato anunciava sua ida à Corte Suprema, com a qual disse “estar contando” para lhe dar um segundo quadriênio.
Foi
e perdeu. No dia seguinte (9/12) chegava à Corte Suprema outra ação, ajuizada
pelo procurador-geral do Texas contra vários Estados-chave que haviam
certificado a vitória de Biden. Sua tese é de que a alteração, feita por esses
Estados neste ano de 2020 de forma supostamente ilegal, teria diluído os votos
do Texas no colégio eleitoral. É, talvez, a última tentativa judicial. Até o
momento em que este texto está sendo escrito, Trump recusa-se a admitir a
vitória de Biden. E os presidentes de Rússia, México e Brasil não
cumprimentaram o presidente eleito dos EUA.
O
fato é que em 20 de janeiro de 2021 termina o inacreditável quadriênio de
Donald Trump. Quatro anos de “fatos alternativos”, de relação conflituosa com a
verdade. Mas foram 74 milhões de votos, 10 milhões a mais que em 2016. “74
milhões” é o título do imperdível artigo de Moisés Naim publicado neste jornal
(23/11). São 74 milhões, escreve Naim, que “não se importaram em votar em um
presidente que mente de forma compulsiva, constante e facilmente verificável.
Que (...) não acreditam que Trump seja um mentiroso, ou não se importam com
isto, ou têm necessidades e esperanças mais importantes”.
Sobre
o quadriênio Bolsonaro. Meu mais recente artigo neste espaço (Faltam dois anos,
8/11) perguntava: dois anos é muito? É pouco? Bolsonaro está a aprender a
diferença entre disputar uma eleição e governar um país da complexidade do
Brasil. Como notaram vários analistas, nosso presidente atuou sem partido e sem
base no Congresso até abril/maio de 2020. Deu-se conta, então, de que a
sobrevivência política e sua reeleição dependiam de aceitar o que sempre
negara, como pedra de toque de sua campanha eleitoral: a necessidade de abrir
espaços para indicações de partidos de sua futura “base” na máquina pública.
Marcus
André Mello (O futuro de Bolsonaro, FSP, 7/12) chamou a atenção para o
paradoxo: “Um chefe do Estado populista irá se deparar com um sistema
institucional que imporá limites à sua discricionariedade. E o apoio do bloco
só existirá se Bolsonaro for popular”. Política, afinal, é expectativa de
poder, de preservação de espaços ocupados e de expectativas de espaços por
ocupar. Como veremos nos próximos meses.
Naquele
mesmo artigo chamei a atenção para as importantes lições das transições de
2002/2003 (FHC/Lula) e de 2016 (Dilma/Temer). Em excelente artigo publicado
desde então (Um Acordo de Transição, Globo/Estado, 29/11), Gustavo Franco
nota que “o Brasil possui vasta experiência em transições turbulentas (...) mas
não dentro de um mesmo governo”. Gustavo lista razões a explicar a dificuldade
para fazê-lo “no atual estado de polarização, quando o governo (...) não
consegue fazer acordo nem com ele mesmo”.
E
dizer que metade de seu quadriênio já se foi... Em áreas cruciais como saúde,
educação, meio ambiente e relações exteriores, é duro imaginar que na segunda
metade possa continuar a disfuncionalidade que o Brasil hoje exibe ao mundo. E
não é por falta de gente competente nessas áreas em nosso país.
*Economista, foi ministro da Fazenda no governo FHC
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