quinta-feira, 7 de janeiro de 2021

Carlos Alberto Sardenberg - O vírus espalhado

- O Globo

Com programas públicos em andamento, não haveria por que impedir hospitais e clínicas privadas de vender vacinas

Quem correu mais riscos no réveillon? As pessoas que se aglomeraram nas praias ou as que trabalharam em festas (clandestinas, claro) promovidas em casas e mansões (cozinheiros, garçons, copeiros, faxineiros, seguranças, motoristas, operadores de som e vídeo)?

Pelo que diz o CDC (Centro de Controle de Doenças, do governo americano, cdc.gov), foram as pessoas que trabalharam e frequentaram as festas.

O CDC oficializou as evidências científicas sobre a transmissão do coronavírus. Entre elas: o risco é muito baixo em atividades ao ar livre; risco muito alto em festas.

Mas, considerando os quatro fatores básicos para calcular riscos, o pessoal da praia também se arriscou muito.

São eles, sempre colocando na frente os de maior risco:

1) Interior versus exterior;

2) espaços estreitos versus espaços amplos e ventilados;

3) alta densidade de pessoas versus baixa densidade;

4) exposição mais longa versus exposição mais breve.

Há outros dados interessantes que ajudam a avaliar as situações. A carga necessária para a pessoa contrair o vírus é receber 1.000 partículas virais (PVs). Na respiração, a pessoa exala mais ou menos 20 PVs por minuto. Na fala, são 200 PVs/minuto. Mas, se a pessoa contaminada espirra, ela espalha nada menos que 200 milhões de PVs, um volume suficiente para permanecer no ar por horas se o ambiente for mal ventilado.

Logo, ao ficar na praia, tomando distância, em grupos pequenos, o risco é baixo. Aglomerar sem máscaras, confraternizar nos botecos ou barraquinhas, aos gritos e gargalhadas, risco altíssimo.

Acrescente aí o pessoal que tomou o busão para ir às praias ou para trabalhar nas festas, e a conclusão é clara: muita gente, rica ou remediada, festeira ou trabalhadora, espalhou e recebeu o coronavírus. O efeito das comemorações de Natal e Ano Novo já está aí, mas o número de casos e mortes ainda vai aumentar. Com uma desigualdade evidente: os trabalhadores e “populares” vão para a fila do SUS; os festeiros, para os hospitais particulares.

Tudo isso para demonstrar que há muito debate inútil por aí. A ciência já conhece o vírus principal (está pesquisando as variações) e já demonstrou como ele se transmite de pessoa para pessoa.

Está provado que, quanto mais distanciamento social, quanto mais lockdown, menos contaminações. Sim, há pessoas que precisam sair de casa e tomar transporte público para trabalhar. Há meios de reduzir os riscos: máscaras, lotação reduzida, ambiente ventilado — e é papel dos governos oferecer isso e ordenar o distanciamento onde é possível —, até que pelo menos a metade da população esteja vacinada.

A vacinação é tarefa do setor público. Mas uma vez que programas públicos, federais, estaduais e municipais, estejam em andamento, não há razão nenhuma para impedir que hospitais e clínicas privadas vendam as vacinas. É assim que funciona na vacinação anual contra a gripe.

A Agência Nacional de Saúde poderia estabelecer algumas regras para isso — se fosse um governo federal eficiente.

Como não é, podemos esperar muita confusão e judicialização, tanto na vacinação pública — governos estaduais podem começar primeiro? — quanto na privada.

Para sermos justos, é preciso notar que também nos países desenvolvidos há problemas e atrasos na vacinação. Por isso mesmo, diante do aumento do número de casos pós-festas de fim de ano, governos do Reino Unido e da Alemanha — para citar apenas dois que têm fama de bons serviços públicos de saúde — estão endurecendo as medidas de lockdown e distanciamento.

Deveria ser feito por aqui também. Mas com esse presidente...

E, para complicar ainda mais, temos aqui no Brasil um problema muito especial: o fim do auxílio emergencial, sem que se tenha providenciado algo para colocar no lugar. Artigo do economista Alexandre Schwartsman, publicado no Infomoney, mostra estreita correlação entre o auxílio e vendas no varejo (ou consumo das famílias), como fator importante da recuperação desse setor.

E, por óbvio, a queda que deve ocorrer uma vez retirado o auxílio. Sim, o programa é caro, mas poderia ser aplicado um menor, mais direto — mais barato, portanto —e com dinheiro tirado dos privilégios do setor público.

Poderia..

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