Ele
voltou à cena nas ocorrências de furadores da fila para vacinação contra a
covid-19
O
“fura-fila”, crônica figura do elenco dos protagonistas de maus costumes
brasileiros, não é apenas a figura isolada do transgressor egoísta dos direitos
de todos. Ele faz parte de um gênero das anomalias encravadas em nosso caráter
nacional.
O
“fura-fila” voltou à cena nas ocorrências de furadores da fila para vacinação
contra a covid-19. Definiu-os o vice-presidente da República como gente sem
caráter nem solidariedade. Como se trata de um gênero de mau-caratismo, abrange
os que estimulam e apoiam os que furam a fila da vida alheia na desobediência
às regras de segurança sanitária de todos.
Anomalias
e defeitos do caráter nacional têm raízes históricas profundas. Não por acaso,
em diferentes formas e manifestações, podem elas ser encontradas até mesmo em
obras referenciais da literatura brasileira, como em “O Alienista”, de Machado
de Assis, na loucura de Simão Bacamarte.
Para compreender o egoísmo antissocial e as invisibilidades do sistema de anomalias de conduta desse gênero, que se expressam na falta de caráter do “fura-fila”, recorro a obras de quatro de meus confrades da Academia Paulista de Letras. É quase natural que identifiquemos em suas personagens alguém que conhecemos e de cujos tormentos temos consciência.
As
deformações de caráter e as anomalias de conduta nelas personificadas estão
distribuídas na sociedade inteira. Manifestam-se em personalidades débeis. São
aquilo que a sociologia define como anomia, ausência de normas que torna
socialmente desviante o comportamento ou o põe em risco de discrepar do
moralmente esperado e necessário.
Em
“Antes do Baile Verde”, Lygia Fagundes Telles nos apresenta aos dilemas de
Tatisa, preocupada com os afazeres de preparação da roupa para o baile de
Carnaval, cujo tema será a cor verde. Não obstante, em outro aposento, seu pai,
muito doente, esteja morrendo. Ante a estranheza de Lu, sua empregada, Tatisa desenvolve
argumentos para isentar-se de responsabilidade e de culpa. A culpa é dos
outros, do médico, da própria empregada. É o “fiz a minha parte” de uma fala
recente do atual presidente.
Tatisa
personifica a alienação que decorre das prioridades invertidas da sociedade de
consumo e do espetáculo. É característica da classe média a falta de
consciência de alternativas para os dilemas e impasses da vida. Culpar o outro
ou a vítima é a saída autoindulgente.
Anna
Maria Martins, nos contos de seu denso livro “Trilogia do Emparedado”,
desenvolve narrativas que ilustram e desvendam os emparedamentos desta
sociedade. Mesmo o emparedamento dos que emparedam os outros para sobreviver
numa sociedade assim. E se emparedam a si mesmos, sujeitos que são de uma
sociedade que, ao coisificar as pessoas, se torna vazia e povoada de seres
vazios.
O
conto “Plataforma 3”, cujo cenário é a estação da Luz, expõe o interior de um
homem que deixa a mulher, sai de casa e resolve partir. À medida que se
defronta com a afetividade de pessoas que estão juntas, no vai e vem de
passageiros na plataforma, vai tomando consciência de sua pobreza de alteridade
e de sua alienação no egoísta que é, vazio de afetividade em relação à mulher
que deixara. Volta para casa, abre a porta, entra, chama. A casa está vazia,
como se ali não tivesse havido ninguém desde há muito.
Maria
Adelaide Amaral, em “Luísa”, narra a história da personagem que dá nome ao
livro, que é apenas expressão imaginária do que dela acha um grupo de amigos
intermitentes. Luísa é um resíduo da condição humana, o intersticial de uma
sociedade de restos, de fragmentos de humanidade e de pessoa.
Luísa
é um perambular indeciso da visão que dela têm os outros. Ela é um outro, que
não se realiza como pessoa tangível de sentimentos e decisões. Neste grande
livro de Maria Adelaide, os encontros são desencontros de humanos provisórios e
inacabados.
O
“fura-fila” e o transgressor egoísta e prepotente das normas de saúde coletiva,
na situação adversa da pandemia, pensam que o todo se resume neles. Estão
sozinhos no mundo. Eles são o nada de um verde-amarelo que desbotou, de uma
pátria que agoniza, afogada nos pressupostos neofascistas de uma grandeza falsa
e minúscula.
Em
obra desafiadora, “Um Estudo em Branco e Preto”, de Mafra Carbonieri, a
obsessão de sua personagem é assassinar a esposa. A cada tentativa comete o
assassinato que não ocorre, que pensa ter praticado, mas não aconteceu, na
mulher que retorna sempre ao seu cotidiano caseiro e repetitivo. Ele é o duplo
da alienação pós-moderna, desencontrado consigo mesmo, esquizofrênico. Sua
loucura, no entanto, faz revelações filosóficas que só os loucos propiciam.
Na
literatura está nossa consciência de que vivemos num país socialmente enfermo.
*José de
Souza Martins é sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP.
Simon Bolivar Professor (Cambridge, 1993-94). Pesquisador Emérito do CNPq.
Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, é autor de “Moleque
de Fábrica” (Ateliê).
Nenhum comentário:
Postar um comentário