sexta-feira, 5 de fevereiro de 2021

José de Souza Martins* - Quem é o “fura-fila”

- Valor Econômico / Eu & Fim de Semana

Ele voltou à cena nas ocorrências de furadores da fila para vacinação contra a covid-19

O “fura-fila”, crônica figura do elenco dos protagonistas de maus costumes brasileiros, não é apenas a figura isolada do transgressor egoísta dos direitos de todos. Ele faz parte de um gênero das anomalias encravadas em nosso caráter nacional.

O “fura-fila” voltou à cena nas ocorrências de furadores da fila para vacinação contra a covid-19. Definiu-os o vice-presidente da República como gente sem caráter nem solidariedade. Como se trata de um gênero de mau-caratismo, abrange os que estimulam e apoiam os que furam a fila da vida alheia na desobediência às regras de segurança sanitária de todos.

Anomalias e defeitos do caráter nacional têm raízes históricas profundas. Não por acaso, em diferentes formas e manifestações, podem elas ser encontradas até mesmo em obras referenciais da literatura brasileira, como em “O Alienista”, de Machado de Assis, na loucura de Simão Bacamarte.

Para compreender o egoísmo antissocial e as invisibilidades do sistema de anomalias de conduta desse gênero, que se expressam na falta de caráter do “fura-fila”, recorro a obras de quatro de meus confrades da Academia Paulista de Letras. É quase natural que identifiquemos em suas personagens alguém que conhecemos e de cujos tormentos temos consciência.

As deformações de caráter e as anomalias de conduta nelas personificadas estão distribuídas na sociedade inteira. Manifestam-se em personalidades débeis. São aquilo que a sociologia define como anomia, ausência de normas que torna socialmente desviante o comportamento ou o põe em risco de discrepar do moralmente esperado e necessário.

Em “Antes do Baile Verde”, Lygia Fagundes Telles nos apresenta aos dilemas de Tatisa, preocupada com os afazeres de preparação da roupa para o baile de Carnaval, cujo tema será a cor verde. Não obstante, em outro aposento, seu pai, muito doente, esteja morrendo. Ante a estranheza de Lu, sua empregada, Tatisa desenvolve argumentos para isentar-se de responsabilidade e de culpa. A culpa é dos outros, do médico, da própria empregada. É o “fiz a minha parte” de uma fala recente do atual presidente.

Tatisa personifica a alienação que decorre das prioridades invertidas da sociedade de consumo e do espetáculo. É característica da classe média a falta de consciência de alternativas para os dilemas e impasses da vida. Culpar o outro ou a vítima é a saída autoindulgente.

Anna Maria Martins, nos contos de seu denso livro “Trilogia do Emparedado”, desenvolve narrativas que ilustram e desvendam os emparedamentos desta sociedade. Mesmo o emparedamento dos que emparedam os outros para sobreviver numa sociedade assim. E se emparedam a si mesmos, sujeitos que são de uma sociedade que, ao coisificar as pessoas, se torna vazia e povoada de seres vazios.

O conto “Plataforma 3”, cujo cenário é a estação da Luz, expõe o interior de um homem que deixa a mulher, sai de casa e resolve partir. À medida que se defronta com a afetividade de pessoas que estão juntas, no vai e vem de passageiros na plataforma, vai tomando consciência de sua pobreza de alteridade e de sua alienação no egoísta que é, vazio de afetividade em relação à mulher que deixara. Volta para casa, abre a porta, entra, chama. A casa está vazia, como se ali não tivesse havido ninguém desde há muito.

Maria Adelaide Amaral, em “Luísa”, narra a história da personagem que dá nome ao livro, que é apenas expressão imaginária do que dela acha um grupo de amigos intermitentes. Luísa é um resíduo da condição humana, o intersticial de uma sociedade de restos, de fragmentos de humanidade e de pessoa.

Luísa é um perambular indeciso da visão que dela têm os outros. Ela é um outro, que não se realiza como pessoa tangível de sentimentos e decisões. Neste grande livro de Maria Adelaide, os encontros são desencontros de humanos provisórios e inacabados.

O “fura-fila” e o transgressor egoísta e prepotente das normas de saúde coletiva, na situação adversa da pandemia, pensam que o todo se resume neles. Estão sozinhos no mundo. Eles são o nada de um verde-amarelo que desbotou, de uma pátria que agoniza, afogada nos pressupostos neofascistas de uma grandeza falsa e minúscula.

Em obra desafiadora, “Um Estudo em Branco e Preto”, de Mafra Carbonieri, a obsessão de sua personagem é assassinar a esposa. A cada tentativa comete o assassinato que não ocorre, que pensa ter praticado, mas não aconteceu, na mulher que retorna sempre ao seu cotidiano caseiro e repetitivo. Ele é o duplo da alienação pós-moderna, desencontrado consigo mesmo, esquizofrênico. Sua loucura, no entanto, faz revelações filosóficas que só os loucos propiciam.

Na literatura está nossa consciência de que vivemos num país socialmente enfermo.

*José de Souza Martins é sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Simon Bolivar Professor (Cambridge, 1993-94). Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, é autor de “Moleque de Fábrica” (Ateliê).

 

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