Haverá
muita tensão na relação do bolsonarismo autoritário com o fisiologismo do “centrão”
O
presidente Bolsonaro inaugurou dois pactos diferentes com o Legislativo em
comparação ao que ocorrera desde o fim do regime militar. Nos primeiros dois
anos de governo ele se recusou a montar uma coalizão estável com os partidos no
Congresso Nacional. Tratava-se de um estilo de governar mais autocrata, contra
o que chamava de “velha política”. Agora, no início da segunda parte do
mandato, faz uma aliança exatamente com aqueles que dizia mais desprezar, o
“centrão”. Que tipo de política resultará dessa aliança do bolsonarismo com o
grupo mais fisiológico do sistema político? É possível pensar em alguns
cenários, mas a incerteza derivada dessa novidade é muito grande.
Antes
de analisar o novo cenário político é importante discutir o primeiro modelo de
relação entre Executivo e Legislativo escolhido por Bolsonaro. Em primeiro
lugar, as derrotas legislativas foram maiores do que a dos demais presidentes
no início do governo. Bolsonaro teve o maior número de medidas provisórias que
caducaram, a maior quantidade de vetos presidenciais derrubados. Mais do que
isso: algumas de suas bandeiras de campanha, como as temáticas morais e seu
plano para a segurança pública, foram negligenciadas ou desfiguradas.
Sua maior vitória, a reforma da Previdência, ocorreu menos por seus esforços como liderança presidencial e mais porque tratava-se de uma agenda com um apoio congressual construído ao longo de anos, especialmente pelo grupo liderado pelo ex-presidente da Câmara, Rodrigo Maia. Outras reformas, como o novo marco legal do saneamento ou a renovação do Fundeb, também derivaram da ação de senadores e deputados com uma agenda própria e independente do Executivo. É interessante notar como Bolsonaro gosta mais de comemorar a aprovação de legislações, digamos, exóticas, como o Código Nacional de Trânsito, do que enfrentar a batalha árida e repleta de negociações que caracterizam decisões vinculadas à reformulação do sistema tributário ou da administração pública.
Esse
modelo com pouco sucesso legislativo já foi ironicamente intitulado de
“presidencialismo do desleixo” pelo cientista político Fernando Limongi, um dos
maiores estudiosos do presidencialismo de coalizão. Nesta linha, Bolsonaro
comportava-se como um Macunaíma político, com grande preguiça para o trabalho
duro da construção de políticas públicas em ambientes democráticos.
Mas
além dessa incompetência atávica, derivada dos 30 anos de baixo desempenho
parlamentar encoberto pelo discurso radical, há um outro ponto que explica a
opção pelo “presidencialismo de desleixo”: Bolsonaro tem uma visão política
profundamente antidemocrática. Seus conflitos com as lideranças congressuais e
com o Supremo Tribunal Federal foram constantes, e em determinados momentos,
sua reação foi a de pedir que seus seguidores se mobilizassem pelo fechamento
dessas instituições. O bolsonarismo já tinha expressado esse sentimento
autoritário durante a campanha eleitoral de 2018, propondo metralhar os
petistas, fechar o STF com um cabo e um soldado, além de definir o “centrão”
com o velho samba: “Se gritar pega ladrão, não fica um, meu irmão”.
Bolsonaro
esticou a corda da democracia no seu primeiro ano e meio de governo, tendo como
ápice desse movimento seu descontentamento com decisões do STF sobre o
inquérito das “fake news”, em maio de 2020. Neste momento, gritou aos
correligionários em frente do Palácio do Planalto: “Chega! Acabou!” O problema
é que no mês seguinte, em 18 de junho, foi preso seu amigo Fabrício Queiroz,
antigo assessor do filho Flávio Bolsonaro, sob a acusação de crime pela prática
da “rachadinha”. O presidente continuou, de tempos em tempos, a expressar
visões de mundo autoritárias, porém, para salvar a família, iniciou o namoro
com o “centrão”.
O
relacionamento não se tornou logo de cara um casamento. Bolsonaro queria a
proteção legislativa de seu mandato e de seus filhos, e em troca também
prometia proteger parcela do “centrão” contra antigos fantasmas de denúncias de
corrupção. Havia outras afinidades também, vinculadas a uma visão conservadora
de mundo, mas entre o noivado e a coalizão muitas conversas ocorreram sem que o
presidente entregasse presentes e anéis caros à sua noiva.
Algo
mudou nos últimos meses, levando a um casamento de papel passado, sacramentado
com as eleições de Rodrigo Pacheco (DEM-MG) ao comando do Senado e, sobretudo,
de Arthur Lira (PP-AL) à presidência da Câmara. Primeiro, o fracasso no combate
à covid-19 começou a pesar na popularidade do presidente. É certo que ele tem
fracassado em várias políticas públicas, arranhando cada vez mais sua imagem
pública. Todavia, a situação de Manaus, com centenas de pessoas morrendo por
falta de oxigênio, criou uma simbologia pesada contra sua desastrosa gestão da
crise sanitária. A palavra impeachment voltou ao vocabulário das ruas e, por
enquanto em menor proporção, dos políticos. A instância que pode desencadear o
processo não poderia ser entregue a um líder descolado de um governismo
visceral.
Somada
a este temor em perder o mandato, outra coisa acelerou os planos de casamento
com o “centrão”: a figura de Rodrigo Maia. O então presidente da Câmara, além
de ser mais independente do que Bolsonaro desejava, começava a conversar com
vários atores políticos para construir uma alternativa de centro contra o
bolsonarismo em 2022. Vale recordar o nome dos interlocutores: João Doria, Ciro
Gomes, Luciano Huck, e provavelmente o mais radical dos bolsonaristas já deve
ter espalhado a “fake news” de que Maia teria jantado com Lula em São Bernardo.
De aliado incômodo, ele se transformara em inimigo - e a estes, na lógica de
Bolsonaro, só cabe a destruição política.
Com
este desenrolar dos acontecimentos, o Palácio do Planalto alimentou, com grande
sucesso, a candidatura de Arthur Lira, despejando bilhões do Orçamento público
e distribuindo centenas de cargos para agradar aos parlamentares. Era uma
batalha de vida ou morte e Bolsonaro levou muito a sério essa guerra, porque
presenciara os ocasos de Fernando Collor e Dilma Rousseff. O nome escolhido foi
perfeito, porque Lira é um político extremamente habilidoso nos corredores da
Câmara, além de ser a cara do deputado típico, sabendo qual é a lógica que
orienta a carreira política padrão. Foi a vitória do “centrão-raiz”, sem as
veleidades intelectuais e ideológicas que Rodrigo Maia tentou dar ao seu grupo.
É
possível retrucar que todos os presidentes, desde Sarney, precisaram do apoio
do “centrão”. Logo, Bolsonaro não estaria inventando a roda. Mas há duas
grandes novidades nesta nova versão do presidencialismo de coalizão. A primeira
é que todos os governos contaram com aquilo que o cientista político Cláudio
Couto chama de “partidos de adesão”, mas quem mandava nas alianças eram os
partidos líderes, representados principalmente pelo PSDB e PT, com suporte de
parte do (P)MDB e do DEM (antigo PFL). A agora é o inverso: o núcleo do poder
político congressual está nas mãos do “centrão”, conhecido pela lógica
fragmentada e distributivista de atuação de seus membros, e ele que definirá
agora a agenda maior do país.
Em
poucas palavras, os governos tucanos e petistas procuravam governar com o apoio
do “atraso”, mas imaginavam liderar esse processo, inclusive propondo políticas
universalistas - como o Plano Real e o Bolsa Família - que atacavam em cheio o
modelo clientelista tradicional. Com a inversão completa do modelo, fica a
pergunta: que tipo de modernização vai ser proposta pelo “centrão”?
Há
uma segunda novidade: a junção do fisiologismo desbragado com um presidente que
tem uma visão autoritária da política. Quem vai definir o padrão hegemônico do
jogo? Claro que talvez cada um ceda um pouco, mas, mesmo assim, o que significa
essa troca? Para o Congresso, fechar os olhos para práticas autocráticas do
Executivo. E para o Palácio do Planalto, fechar os olhos para as práticas
clientelistas que vão invadir a Esplanada dos Ministérios.
Muitos
estão apostando que o custo desse casamento será muito alto para o
bolsonarismo, porque nunca o “centrão” teve tanto poder de barganha como agora.
Trata-se de um cenário com boas chances de acontecer e isso pode se
intensificar se a popularidade de Bolsonaro piorar. Entretanto, o bolsonarismo
não é uma força política como as anteriores. É um movimento de massa liderado
por político messiânico de extrema-direita capaz de mobilizar seu séquito,
geralmente violento, contra quem o descontenta. Além disso, o presidente está
num cenário em que a oposição, tanto a de centro quanto a de esquerda, está
muito dividida e sem um projeto claro de poder.
Desse
modo, se os “partidos de adesão” quiserem aumentar seu preço, o outro lado do
balcão não vê, por ora, concorrentes e está disposto a usar suas armas de
dissuasão. O mais provável é que, nos próximos seis meses, a crise aumente de
intensidade, mas não será fácil para o “centrão” separar-se marotamente do
bolsonarismo. Haverá muita tensão neste casamento do autoritarismo com o fisiologismo
do “centrão”. Qual agenda legislativa sairá dessa relação e como será o
comportamento dos parlamentares na tramitação e votação dos projetos? Essa é a
pergunta que definirá a política brasileira neste ano.
*Fernando Abrucio, doutor em ciência política pela USP e professor da Fundação Getulio Vargas
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