Precisamos
recuperar, na vida pública, uma hierarquia do saber
Vivemos
uma espécie de apagão de critérios. Como o Estado de Direito e o devido
processo legal estão sob vara desde, ao menos, 2013, as mentes foram ficando
confusas, atrapalhando-se, perdendo a noção de hierarquia.
Assistiu-se,
nesse tempo, a cada dia, a um tantinho de abuso impune. E fomos nos
abastardando. Ou, nas palavras de Graciliano Ramos em “Memórias do Cárcere”,
nós, como povo, “nos acanalhamos”. E, nesse ambiente, começamos a conviver com
o “tudo é possível”, dizendo a nós mesmos: “Vá lá, isso não é tão grave”.
Nesta
semana, dois eventos ilustram essa decadência, vamos dizer, civilizacional. Só
para lembrar: em 1995, FHC apanhou severamente da imprensa porque disse que as
críticas que lhe faziam as oposições eram “nhenhenhém”. Viu-se ali desrespeito
ao contraditório. Bem mais rascante, Lula chamou seus críticos de “babacas”.
Apanhou. Inclusive deste escriba. Já fomos melhores, como se vê.
Alguns
ficaram um tantinho chocados com o fato de deputados do PSOL terem homenageado
Bolsonaro, na quarta, com palavras como “genocida” e “fascista”.
Também levantaram pequenos cartazes, em tamanho de papel ofício, que traziam
essas palavras, acompanhadas de um “Fora”. Não me choquei. O que me preocupou
foi o fato de tão poucos terem protestado de maneira evidente e clara.
Sei que alguns preferem debater se, afinal, Bolsonaro é mesmo um “fascista” e “genocida”; se os termos não traduzem mera “lacração”; se não faltam os requisitos históricos que definem uma coisa e outra. Assim que o genocídio (querem aspas?) dos pobres de tão pretos e pretos de tão pobres chegar ao fim —ao menos em razão da Covid-19—, prometo que topo fazer esse debate.
Enquanto
pessoas morrerem asfixiadas por falta de oxigênio, na reta dos
250 mil cadáveres antes que fevereiro chegue ao fim, os que exibem
tal sede de precisão busquem aí como definir um presidente que incentiva —e
pratica— todos os comportamentos de risco e que sabota os meios para reduzir o
contágio. Acrescentem à soma de características para chegar ao nome adequado
—que seja, por ora, “O Coiso— o fato de que este mesmo presidente criou as
dificuldades que estavam ao seu alcance para impedir o início da imunização.
Fascista?
Atendendo, então, à objetividade dos sufixos, serviria “fascistoide”?
Participou de atos que pregavam abertamente o fechamento do Congresso —ali onde
a Paz Perpétua era celebrada na quarta— e do Supremo. Discursou em frente ao QG
do Exército, num incentivo claro à intervenção militar.
Estranho
seria que participasse de uma solenidade no Congresso sob o silêncio ou
cúmplice ou acovardado de todos os parlamentares. Digamos que fosse pertinente
agora um debate sobre a criação de um Selo de Origem Controlada para definir um
“fascista” e um “genocida”. Ainda assim, seria incontroverso que os
oposicionistas estavam obrigados a encontrar palavras para designar “O Coiso”.
Tratei
até aqui de Bolsonaro e das palavras que alguns pretendem ser as historicamente
incorretas para defini-lo. Esta foi
também a semana em que a Lava Jato de Curitiba chegou ao fim, sob muitas
lágrimas. As 105 reportagens da Vaza Jato já fizeram a anatomia da
criação do Estado paralelo —que, ora vejam!, resultou justamente na eleição de
Bolsonaro.
Parte
do que foi recolhido pela Operação Spoofing começa a vir à luz. Reitera os
descalabros e acrescenta novos assombros. Sergio Moro constituiu a própria
mulher como advogada para ver se substitui Ricardo
Lewandowski por Edson Fachin na relatoria do caso na esperança
de que se submeta também a verdade a um apagão.
Os
que se fizeram sócios da empreitada que corrompeu o direito penal no Brasil,
inclusive na imprensa, corrompem agora os fatos para ligar o tal “desmonte da
Lava Jato” —que não existe— aos supostos interesses de Bolsonaro. Trata-se de
uma fraude histórica, intelectual e moral.
Precisamos recuperar, na vida pública, uma hierarquia do saber. Proponho a Constituição e o devido processo legal acima de todos. Que tal?
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