Pode
ser que eu esteja maluco. Morreu há muitos anos o amigo Chico Nélson, que me
socorria nesses momentos de dúvida e dizia: “Tranquilo, você está lúcido”.
Nada
me impressiona mais na sequência de bobagens diárias de Bolsonaro do que esta
pergunta: “Será que não estamos enfrentando uma nova guerra?”.
O
presidente da República é, pela Constituição, o comandante das Forças Armadas.
Se ele se volta para nós e pergunta se estamos enfrentando uma guerra,
deixa-nos tão inseguros quanto os passageiros de um avião questionados por um
piloto ao aterrissar: “Será que estamos com o trem de pouso acionado?”.
O
contexto da pergunta é claro: o presidente duvida da origem do coronavírus.
Essa é uma dúvida que circulou no ano passado, com inúmeras reportagens
investigativas sobre o laboratório de Wuhan de onde o vírus poderia ter
escapado.
Nenhuma delas foi convincente. A Austrália duvidou do papel da China e pediu oficialmente uma investigação. Você pode ou não concordar com a medida, mas é muito mais sério do que ficar reclamando pelos cantos, como faz a família Bolsonaro.
A
OMS constatou em Wuhan que a hipótese de o vírus ter escapado do laboratório é
improvável, fortalecendo a ideia de uma transmissão por animais.
A
China é um país com grande crescimento material e uma visão estratégica de
longo alcance. É um absurdo imaginar que disseminaria um vírus em sua própria
população, correndo um risco gigantesco, apenas para atingir os outros.
Essa
é uma tese de gente que acha que o Partido Democrata americano é composto de
pedófilos que se reúnem no porão de uma pizzaria.
Apesar
de admirar a riqueza e a cultura tradicional da China, não creio que possa ser
qualificado de um maldito comunista. Pelo contrário. Quando deputado,
participei de uma coalizão internacional pelo Tibete livre. Convidei o Dalai
Lama para falar no Congresso brasileiro, briguei com o Itamaraty quando, sob
pressão da China, hesitou em conceder o visto de entrada ao líder religioso.
É
possível e necessário discordar da política de grandes potências, EUA ou China,
desde que se parta de convicção profunda, assumindo as consequências dessa
discordância.
É
inadmissível um presidente da República difundir fake news e teorias da
conspiração contra a China, sem nem assumir que está falando do país.
É
possível que a Austrália sofra alguma retaliação comercial por se opor à China
abertamente. No caso brasileiro, o elemento covardia talvez seja uma agravante
porque Bolsonaro fala de um vírus, fala de um país que cresceu após a pandemia,
mas não assume que se referia à China.
No
momento em que está acossado pela CPI, essas referências ao coronavírus como se
fosse um ato de guerra dos chineses mostram como Bolsonaro realiza
profundamente aquilo que denuncia em seus opositores: a politização da
pandemia.
É
um movimento patético, porque Bolsonaro é acusado de um negacionismo que
contribuiu com a morte de muita gente. Nesse caso, rigorosamente não importa se
o vírus foi ou não difundido pelos chineses nessa fantástica guerra; o que
importa é se ele mata ou não.
A
ideia de ignorar o vírus e tocar a economia como se nada estivesse acontecendo
é uma leitura bárbara da teoria de imunidade de rebanho. É um tipo de
estratégia a ser realizada pela vacinação e por outras medidas de segurança,
jamais pela exposição à morte de milhares de pessoas.
A
política internacional tornou-se mais complexa com a ascensão da China e o
relativo declínio dos Estados Unidos. Nossa vida cotidiana foi atropelada pela
pandemia.
Nunca
foi necessária tanta habilidade de um estadista para posicionar o Brasil no
mundo e, simultaneamente, conduzir uma política interna de proteção da vida.
Bolsonaro
jamais se interessou pela política internacional, jamais se interessou por
salvar vidas, mas apenas por tocar a economia e salvar seu mandato.
Homem errado no lugar errado é a grande causa de nosso sofrimento.
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