segunda-feira, 10 de maio de 2021

Ana Cristina Rosa - ‘Escravidão fantasiada de liberdade'

- Folha de S. Paulo

Falta de remuneração, estudo e dignidade levou negros à condição de inferioridade pós-Abolição

Certas obras de ficção são capazes de auxiliar na compreensão da realidade. O premiado romance "Torto Arado", de Itamar Vieira Junior, é assim. Ajuda a entender nosso país, as bases em que foi fundado e como chegamos ao atual nível de injustiça social. A narrativa ambientada no passado, no sertão baiano, traz à tona algumas das causas que resultaram nas absurdas disparidades que marcam o presente da nação, 133 anos após a abolição formal da escravatura.

O cenário de preconceito e discriminação com negros e indígenas; a precariedade das moradias; o trabalho análogo à escravidão; a comida minguada; o analfabetismo; o difícil acesso dos pobres à saúde; a ausência de saneamento básico; o alto índice de mortalidade de crianças pretas. Tudo é de uma atualidade desconcertante.

É oportuno lembrar o déficit habitacional, o enorme contingente de pessoas em situação de rua, o retorno da fome como parte da rotina de milhares de brasileiros e o agravamento da discrepância entre a qualidade do ensino público e a do particular. São chagas abertas no Brasil Colônia e ainda não cicatrizadas, algo similar a escaras que se formam em corpos enfermos e inertes por muito tempo. Se quiser curar suas feridas, o país terá de se mexer.

"Quando deram a liberdade aos negros, nosso abandono continuou (....). A mesma escravidão de antes fantasiada de liberdade", diz um trecho do livro de Itamar.

Sem direito a remuneração, estudo ou propriedade. Sem direito à dignidade. Eis a origem da situação que relegou os negros no Brasil a uma condição de inferioridade socioeconômica no pós-Abolição. Apesar das evidências, há quem negue as desigualdades ou individualize uma responsabilidade que precisa ser compartilhada com a sociedade.

"A luta era desigual, e o preço foi carregar a derrota dos sonhos, muitas vezes", consta em outro trecho. Apesar da desigualdade e da injustiça, havia e há resiliência. Porque não dá para desistir dos sonhos.

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