O que a imagem de corpos pretos ensanguentados reforça é a realidade bruta de que a lei não é para todos
Ao
nomear como “Exceptis” a operação
que invadiu a comunidade de Jacarezinho,
na capital fluminense, na última quita feira (6), o governo já deixava claro
que a lei não condicionaria a ação dos seus agentes, antecipando o que se
converteu numa das maiores chacinas no do Estado do Rio de Janeiro nas últimas
décadas.
O
fato é que o ideal civilizatório de que todas as pessoas e, em especial, os
agentes públicos (civis e militares) devem pautar as suas condutas pela
legalidade jamais se consolidou no Brasil. Certamente, os dois regimes de
exceção, fundados na ruptura da ordem constitucional, exercidos por meio do
arbítrio e coroados pela impunidade daqueles que cometeram crimes contra a
humanidade, não contribuíram para fortalecer, em nossa acidentada história
republicana, a noção básica de império da lei.
A incompletude do estado de direito no Brasil transcende, porém, os regimes propriamente autoritários. A profunda e persistente desigualdade, o racismo estrutural e a forte hierarquização social têm se demonstrado obstáculos intransponíveis para que todas as pessoas sejam reconhecidas como sujeitos de direitos e, portanto, tratadas como igual respeito e consideração.
O
que a imagem de corpos sempre pretos ensanguentados a cada nova chacina reforça
é a realidade bruta de que a lei, nessas plagas, não é para todos. Que no
Jacarezinho e nas demais periferias sociais brasileiras vigora um permanente
estado de exceção. Que a “ordem” é determinada pelo arbítrio das milícias, do
tráfego e, quando necessário, pelo arbítrio dos agentes do Estado.
Mais
de três décadas de democracia não foram suficientes para pôr fim a um regime de
exceção permanente que se impõe à grande parte da população. A perda de mais de
1 milhão de vidas, vitimadas por homicídios neste período, e a crueldade das
experiências de comunidades dilaceradas pela violência, não foram suficientes
para que governos democráticos levassem a cabo um plano de reformas das
instituições de aplicação da lei, voltado a expandir o Estado de direito para
todos os brasileiros.
Os
poucos líderes que se propuseram modernizar as policias e o sistema de
segurança e aplicação da lei criminal sucumbiram à resistência de interesses
corporativos ilegítimos e políticos irresponsáveis, quando não coniventes ou
mesmo beneficiários da deterioração do sistema de justiça criminal. O medo do
crime abriu um amplo mercado para milícias e poder para maus policiais. Também
rende votos para aqueles que oferecem uma solução rápida, fácil, mas, no
entanto, incapaz de reduzir a criminalidade.
As
políticas do “bandido
bom é bandido morto”, da “Rota na rua”, dos “direitos humanos para humanos
direitos” e de “armar
o cidadão de bem”, que prevaleceram no Brasil nas últimas décadas, com
amplo apoio da direita —como
fez questão de deixar claro o general Mourão, ao legitimar a operação
“Exceptis”— redundaram num retumbante fracasso. Com raras exceções, a
constrangedora omissão de liberais e incompetência da esquerda também
contribuíram para o fiasco na segurança pública.
A
eleição de Bolsonaro e aliados armados, paradoxalmente, premiou justamente
aqueles que mais têm contribuído para que a população se encontre refém da
criminalidade e da violência de Estado.
A operação
“Exceptis” não apenas afronta o Supremo Tribunal Federal, que impediu a
realização de operações policiais nas comunidades do Rio de Janeiro durante a
pandemia, mas também deixa clara a indisposição de determinados setores do
Estado brasileiro de se submeter ao império da lei.
*Professor da FGV Direito SP, mestre em direito pela Universidade Columbia (EUA) e doutor em ciência política pela USP.
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