Ao
buscar que a polarização se dê mais ao centro, tomando alguma distância dos
extremos, o presidente dos Estados Unidos tenta de forma pragmática construir
uma democracia mais sólida a partir de tudo que Trump abalou
No
Brasil, o presidente dos Estados Unidos já foi chamado de esquerdista,
comunista, socialista. Na Argentina, ele tem sido chamado de Juan Domingo
Biden, em alusão a Perón. A atual vice-presidente, Cristina Kirchner, deu-se
inclusive ao trabalho de fazer um longo fio no Twitter explicando por que Biden
seria a expressão mais pura do peronismo — um exagero porém não muito. Devo
dizer que é uma delícia ler os pseudodebates das mídias sociais e as
interpretações latino-americanas sobre o político Joe Biden e sua agenda. Mas,
por experiência própria, insisto que não é possível travar um debate
minimamente inteligente nas mídias sociais. Fim da digressão.
A ideia de que democracias não combinam com polarização tem muitos adeptos. De fato, quando a polarização se radicaliza, abrem-se os flancos para extremismos que, de modo geral, são antitéticos à democracia. Contudo, a polarização, entendida como posicionamentos distintos expressos por dois polos a respeito de temas variados, é endógena à democracia. É muito difícil conceber a ideia de democracia sem a existência de conflitos. A democracia é construída a partir de pactos feitos em torno de conflitos. Tais conflitos não deixam de existir porque se alcançou a possibilidade de coexistência. Ao contrário, caso deixassem de existir por força de algum tipo de união que os dissolvesse em uma opinião única sobre tudo, não haveria mais democracia. União não é sinônimo de visão única. É, antes, uma formação baseada em sentidos compartilhados sobre pertencimento e cidadania que não requerem a resolução de conflitos; ao contrário, supõem os conflitos e têm por propósito garantir a sua possibilidade, o que implica excluir formas violentas e antipluralistas de resolvê-los.
Escrevo,
sucintamente, sobre conflitos, união e democracia para situar Biden na política
americana. Biden foi vice de Barack Obama, um político que aproximou o sentido
da palavra união à visão única. Há quem diga — e tendo a concordar com essa
interpretação — que parte da razão para que Obama tenha sido derrotado nas
eleições de meio de mandato, emperrando sua agenda, está no esforço que fez
para conciliar republicanos e democratas. Nessa linha de interpretação, o
enaltecimento do bipartidarismo por Obama remete a uma visão pouco pragmática
de como trabalhar com conflitos em uma democracia, sobretudo em uma democracia
marcada por fraturas profundas no entendimento dos direitos e das liberdades
civis. Falta espaço nesta coluna para refletir sobre os caminhos fascinantes
dos movimentos sociais e da política americanos, que, antes de tudo, só podem
ser entendidos com lentes ajustadas à vida social e à história dos Estados
Unidos. Peronismo, nacional-desenvolvimentismo e o esquerdismo latino-americano
são inadequados para dar conta de compreender fenômenos tão fora de sua esfera.
Durante
a campanha, Biden citou várias vezes a necessidade de resgatar o senso de
união. Tem feito o mesmo ao longo destes meses iniciais de seu governo.
Isso
não significa construir pontes para alcançar os republicanos, como fez Obama.
Ele atua para reconfigurar o campo das disputas, o que fica bastante claro na
agenda que propõe ao país. Ela tem por objetivo alcançar pessoas que hoje se
encontram alijadas de condições materiais para a cidadania e que se isolaram em
posições diametralmente antagônicas. Ao buscar que a polarização se dê mais ao
centro, tomando alguma distância dos extremos, Biden tenta de forma pragmática
construir uma democracia mais sólida a partir de tudo que Trump abalou. Não
fazer qualquer aceno para o Partido Republicano não o torna um radical de
esquerda, mas um político que entende a importância dos conflitos para a
democracia. Para além disso, com sua agenda de reconstrução e investimento,
Biden não faz questão de abafar as divergências.
Arrisco
dizer que Biden está fazendo algo revolucionário, ainda que não no sentido que
o senador Bernie Sanders empresta à palavra: está trazendo a política para o
centro do debate público, e tornando a economia um instrumento seu. Suas
medidas econômicas, que muitos parecem ver como radicais, têm em vista revitalizar
a democracia americana e não o tornam um radical na política. A recorrente
atribuição de radicalismo a Biden no Brasil faz pensar que nós naturalizamos a
economia como definidora do que é e do que não é democrático, e os Estados
Unidos também o fizeram ao longo das últimas décadas. Contudo, nada tem de
natural em uma democracia a economia ser soberana. Soberana é a política, que,
com Biden, tende a se mover novamente para o centro.
*Monica de Bolle é Pesquisadora Sênior do Peterson Institute for International Economics e professora da Universidade Johns Hopkins
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