sábado, 8 de maio de 2021

Bolívar Lamounier* - Leôncio Martins Rodrigues

- O Estado de S. Paulo

Grande intelectual, um pilar de nossa vida universitária, cidadão exemplar

Conheci Leôncio Martins Rodrigues no primeiro trimestre de 1970, logo que me mudei para São Paulo. Lembro-me perfeitamente da situação. Foi num fim de tarde, num encontro promovido por Fernando Henrique Cardoso, que, naquela época, residia numa casa próxima ao Palácio dos Bandeirantes. Leôncio e eu ficamos trocando ideias sobre nossos respectivos interesses, num canto do jardim interno.

Gentil, simpático, falante, discorreu longamente sobre as pesquisas que andava a fazer sobre a formação da classe operária industrial e as mudanças que começavam a se operar no meio do antigo sindicalismo pelego da era getulista. Nesse campo, ele deu um vigoroso impulso à tradição da USP, que remontava aos trabalhos dos professores Aziz Simão e Juarez Rubens Brandão Lopes.

Não tive o privilégio de ser aluno dele. Tendo feito os estudos de graduação em Minas Gerais e a pós-graduação nos Estados Unidos, nutria a aspiração de lecionar numa universidade federal. Mas um fato insólito se interpôs entre meu regresso dos Estados Unidos e essa aspiração. Em abril de 1969, o governo decretou a aposentaria compulsória de certo número de docentes de várias universidades e entidades de pesquisa. Por alguma razão que Deus um dia me explicará, fui incluído entre os “aposentados”, embora não tivesse emprego algum, nem público nem privado. Lastreada no AI-5, essa medida não era suscetível de apreciação judicial. Daí decorreu que apenas pude lecionar por alguns anos na PUC-SP, passando depois à atividades de consultoria. Mas, decididamente, há males que vêm para bem. Na pós-graduação da PUC vim a conhecer minha mais que querida amiga Maria Teresa Sadek, que viria a ser a segunda esposa do Leôncio. Dessa forma, meus laços de amizade com ele se estreitaram muito.

O esdrúxulo decreto a que me referi antes foi a causa de eu estar na casa do Fernando Henrique naquela tarde. Fernando Henrique movimentava-se para criar um instituto (que viria a ser o Cebrap, o Centro Brasileiro de Análise e Planejamento), graças ao qual diversos pesquisadores puderam permanecer no Brasil, em vez de serem punidos também com o exílio intelectual.

Por seu prestígio como professor e graças a seus trabalhos sobre o sindicalismo, Leôncio rapidamente se tornaria conhecido em todo o Brasil. Havia tempos que Leôncio abandonara o esquerdismo de sua adolescência para se dedicar com crescente afinco a pesquisas sérias, sobre temas relevantes. Um aspecto a destacar é que nos trabalhos dele o embasamento empírico se associava a uma fundamentação teórica que nada tinha que ver com as especulações nefelibatas que grassavam na USP, mercê da influência predominantemente francesa em nossa principal universidade.

Nessa época, à medida que essa concepção pragmática ganhava corpo nos Estados Unidos, na França a maioria dos cientistas sociais ainda ciganeava na vaporosa fragilidade de vários esquerdismos. Na trajetória do Leôncio, os estudos sobre o sindicalismo culminaram numa obra de peso, O Destino do Sindicalismo (Edusp, 1999), que já estaria publicada em outros países se não estivéssemos condenados a fazer nossas carreiras nesse pobre grotão intelectual.

Finda aquela primeira fase, centrada no sindicalismo, Leôncio voltou suas atenções para duas outras direções igualmente relevantes. Por um lado, resolveu conhecer a fundo a classe política brasileira. Conhecê-la não para elogiá-la ou sepultá-la, mas para mostrar importantes mudanças que nela se operavam, com o declínio dos bacharéis desvinculados de interesses grupais ou públicos relevantes e a ascensão de sindicalistas e outros profissionais mais organicamente situados na sociedade. É certo que esse novo veio trouxe em seu bojo o famigerado corporativismo, ou seja, grupos preocupados tão somente em incrustar seus estreitos interesses no casco da nau do Estado patrimonialista. Mas Leôncio, como antecipei, não se propôs a xingar ou elogiar tais grupos: quis “apenas” mostrar que esse é o material de que dispomos para construir nossa democracia. É pegar ou largar.

O outro lado da bifurcação, e a este Leôncio se dedicou com extraordinária paixão, foi o conhecimento dos regimes totalitários. Salvo melhor juízo, não creio que outro cientista político brasileiro se tenha aprofundado nessa área tanto quanto ele. Estudou vorazmente o stalinismo e o Estado soviético, assim como o hitlerismo e o nazi-fascismo. Se até hoje nossas universidades tratam esses magnos temas do século 20 em tom de aquarela, cumpre-nos dizê-lo sem meias-palavras: ninguém como Leôncio combateu o totalitarismo europeu e o ranço dele que ainda permeia nossa cultura. E reparem: Leôncio formou-se nessa área como um autêntico autodidata, caçando bons livros a laço, numa época muito anterior à internet e ao Google.

Eis por que, caros leitores, Leôncio Martins Rodrigues ficará em nossa memória como um amigo inesquecível, um grande intelectual, um pilar de nossa vida universitária e um cidadão exemplar.

*Sócio-Diretor da Augurium Consultoria, é membro das Academias Paulista de Letras e Brasileira de Ciências

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