O Estado de S. Paulo
O coletivo é governado por normas fora dele
que, no entanto, são parte dele ou feitas para ele
A lei, a regra, a norma ou o habitual estão
fora de nós. Quando um desejo nascido no fígado ou no coração nos assalta,
temos de combinar com os costumes. Sem um acordo entre interesses egocêntricos
e leis sociocêntricas não há jogo.
O coletivo é governado por normas fora dele
que, no entanto, são parte dele ou feitas para ele. Não é por acaso que
mandamentos e leis foram entregues a deuses encarnados, patriarcas, visionários
e profetas – a seres extramundanos, como dizia Max Weber – em montanhas
mediadoras entre céu e terra, ou em situações dramáticas como tempestades,
humilhações, extrema solidão e doenças mortais.
Por mais, entretanto, que as leis sejam
sagradas, somos nós que as honramos com nossa lealdade ou desonestidade. Mesmo
vindo do “outro mundo”, não há quem não saiba que as regras mudam e são
mudadas.
Tudo isso para dizer algo simples, mas
pouco discutido no Brasil. Nas monarquias e aristocracias, os soberanos e os
nobres que são parte de sua corte ou família (pessoas especiais, “cortadas” ou
removidas das gentes comuns) não precisam pensar no futuro, pois sua posição
social é dada ao nascer.
Nobres são estruturalmente diferenciados (têm, reza a lenda, sangue azul) e imutáveis. O clero tem uma dinâmica singular porque ninguém nasce padre, bispo ou papa. Mas o “povo” (os membros do chamado “terceiro estado”) tem de construir o seu futuro e esse futuro, como o dos escravos, é preestabelecido. Uma pessoa comum morre como nasce.
A ideia democrática de mobilidade social
vertical – de nascer pobre, mas morrer rico, de ser ninguém e virar alguém – é
parte de uma intrusão individualista ou, como se diz, de um apadrinhamento, de
sorte ou malandragem. Trata-se de uma mudança formidável que, obviamente,
depende de transformações radicais de leis e costumes.
É preciso não esquecer que a igualdade
perante a lei é algo complexo e difícil mesmo em sociedades que nasceram
republicanas, como faz prova o caso americano. Leis justas enfrentam desejos,
projetos, paixões e interesses que promovem injustiça por origem familiar, cor
da pele, trabalho, gênero, idade e mais o que o leitor ou leitora quiser
acrescentar.
Se republicanos natos têm problemas com
suas inevitáveis esferas privilegiadas (os cargos governamentais, por exemplo)
– os ultrarricos ou suas “classes dominantes” –, imagine o Brasil, que nasceu
escravagista e dividido em vice-reinados aristocráticos, reforçados pela fuga
da Corte portuguesa para o Rio de Janeiro, em 1808. E, algumas décadas depois,
com a República, a separação do Estado e da Igreja Católica e a Abolição (bem
como o jogo do bicho).
A questão que não se cala é a seguinte:
como não continuar com privilégios aristocráticos na República, a menos que se
combine com os barões, os altos funcionários e os comuns? Como não ter foros
privilegiados e reversões jurídicas brutais se os ditos republicanos não
enxergam os seus vieses aristocráticos?
Pergunto: o populismo que resolve tudo no
discurso, mas agrava tudo na prática, não seria um modo de tentar combinar uma
nobreza soberana com plebeus sujeitos da lei? Questiono: os foros privilegiados
conferidos aos representantes do povo não seriam emblemas de delegação, de uma
entrega política que embarga a representatividade democrática, conforme sugeria
o cientista político Guillermo O’Donnell?
Meu saudoso mentor, Roberto Cardoso de
Oliveira, dizia que não se passa de pato para ganso impunemente. Não pense o
leitor que estou aqui propondo o absurdo de um retorno à monarquia. Não! Meu
propósito é deslindar essas intrusões jurídicas nobres, parte e parcela de
certos cargos, que recriam leis privadas ou especiais num campo jurídico
igualitário. Infecções sociais que explicam o “Você sabe com quem está
falando?”, esse rito pessoal que reafirma superioridades sociais e, obviamente,
vira um “golpe” quando é articulado por um presidente.
Em suma, não se passa de monarquia
escravocrata a República sem combinar com os golpistas, os coronéis, os barões,
os autoritários reacionários dos dois lados, o machismo, os corruptos e os
racistas estruturais. Os que querem levar vantagem em tudo...
PS: A desmontagem está quase no fim e,
depois, virão outras montagens e mais desmontagens. Os jornalistas Merval
Pereira e Carlos Alberto Sardenberg chamam atenção para esses absurdos e
abusivos desmanches. Afinal, como diz um velho filme de Frank Capra, as causas
perdidas são, paradoxalmente, as causas que valem uma luta. No caso brasileiro,
a da igualdade democrática e, com ela, a da coerência legal. Cedo ou tarde o
nosso lado republicano vai ter de combinar com o nosso poderoso viés
aristocrático – esse mantenedor de privilégios.
*É Antropólogo social e escritor, autor de
‘Fila e Democracia’
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