Valor Econômico
Desinformação e fake news também podem ser
sutis
Fake news não é necessariamente inventar um
dado sem pé nem cabeça e divulgá-lo sem lastro nenhum na realidade. Também é
pegar um número verdadeiro e distorcê-lo maliciosamente, com o objetivo de
manipular a opinião pública ou reforçar as convicções pré-existentes de um
segmento dela. Dizer na tribuna das ONU que brasileiros mais vulneráveis
receberam US$ 800 do governo não é de todo uma mentira quando a conta soma
sabe-se lá quantas parcelas de auxílio emergencial durante a pandemia. Mas é
mais ou menos como dar os parabéns para quem ganhou salário mínimo a vida
inteira e se aposentou depois de 30 anos: “Caramba, você teve uma renda
acumulada de R$ 1 milhão”.
Como há dois anos, quando atacou seus
antecessores socialistas no Palácio do Planalto por terem desviado “centenas de
bilhões de dólares” para comprar jornalistas e parlamentares, o presidente
brasileiro mentiu novamente na ONU. Cifras imaginárias ou fantasmas comunistas
que se escondem debaixo da cama ainda podem ser boas armas para animar grupos
de WhatsApp de quem está #fechadocombolsonaro, mas são as distorções mais sutis
que fazem a turma menos apaixonada balançar em dúvidas quando exposta à máquina
de desinformação.
Às vezes, como ontem, basta omitir para distorcer. É verdade que o crescimento da economia está estimado em 5% em 2021, apenas repondo as perdas do ano anterior, mas esconde-se que o desempenho do segundo trimestre foi o terceiro pior do G-20 e que o maior banco privado do país rebaixou sua previsão de alta do PIB em 2022 para meros 0,5% após o flerte golpista de Jair Bolsonaro no 7 de setembro.
Que bom se pudermos acolher todos os
cristãos do Afeganistão, não mais de 12 mil entre 38 milhões de habitantes no
país. Mas celebremos mesmo a nova Lei de Migração (13.445 de 1997), por meio da
qual qualquer perseguido pelos talebãs, independentemente do credo, pode pisar
no Brasil e obter refúgio imediatamente.
É a lei que substituiu um dos últimos
entulhos da ditadura - o Estatuto do Estrangeiro (de 1980) - e foi tão
duramente criticada por Eduardo Bolsonaro, o filho 03 do presidente, quando
este comandava a Comissão de Relações Exteriores da Câmara em 2019. Eduardo
relatou ter ouvido de uma funcionária de companhia aérea no aeroporto de
Guarulhos, maior porta de entrada e saída do Brasil, como chegavam aviões “normalmente
vindos da África” com dezenas de passageiros mal-intencionados, sem nenhum
conhecimento da língua portuguesa, que “só sabem falar autorrefugiado e já têm
a petição de autorrefúgio no smartphone delas”. Em apenas um dos voos, disse o
03 em tom de indignação, foram “mais de 30 pessoas” pedindo refúgio. Viktor
Orbán, Marine Le Pen ou a líder do Alternative für Deutschland não teriam
reparos à observação.
Tarcísio Freitas, o melhor ministro da
Esplanada, terá ouvido com orgulho o chefe afirmar, no púlpito mais famoso do
mundo, que “em nosso governo promovemos o ressurgimento do modal ferroviário”.
Tarcísio teve o mérito de conceder a Norte-Sul e sempre descreve muito bem como
a reta final de um leilão é tão cheia de percalços que mais parece parto de
porco-espinho.
Com todos os seus erros - fraudes,
corrupção, projetos de engenharia mal feitos -, a ferrovia só existe graças ao
que tem mesmo de ser feito na infraestrutura: visão de Estado, planejamento que
ultrapassa um mandato só. Na inauguração de trecho da Norte-Sul, em março,
caberia uma cortesia com quem ajudou a colocá-la nos trilhos: Temer, Dilma,
Lula, até mesmo FHC, Collor, Sarney. No vizinho Uruguai, quando cortaram a fita
do novo aeroporto de Montevidéu, o presidente Tabaré Vázquez (esquerda) fez
questão de convidar seu antecessor e rival político Jorge Batlle (direita) para
a festa. Não é feio estender a mão ao adversário, ele não é inimigo.
Bolsonaro levou cidadãos de bem à loucura
mencionando o uso do BNDES para financiar obras em países comunistas, mas se
esquece docemente de informar que a China anunciou investimentos de US$ 12,8
bilhões por aqui só nos dois primeiros anos de seu governo.
É fácil apontar mentira no anúncio de
redução de 32% do desmatamento na Amazônia, em agosto, quando números da
véspera vão em sentido oposto. Mais difícil é explicar que abertura da economia
não se concilia com nova lei de licenciamento ambiental, PL da grilagem,
mineração em terras indígenas. Pode-se até discutir o mérito de cada proposta,
sem preconceitos e clima de flá-flu, mas a avaliação da comunidade
internacional é tão negativa que não tem como fugir. É defender isso ou fazer
de conta que vamos ter acordo de livre-comércio Mercosul-União Europeia,
entrada na OCDE, investidores estrangeiros na Ferrogrão. As duas coisas,
juntas, não rolam.
Por falar em reputação, Bolsonaro se
vangloriou por ter recuperado a credibilidade externa do país. Ontem, no exato
minuto em que o presidente terminou o discurso, Ian Bremmer, analista de risco
político mais paparicado da atualidade, tuitou com deboche: “Primeiro, Fidel
Castro teve que procurar um quarto no Harlem [durante uma Assembleia Geral da
ONU]. Agora isso”. E vinha uma foto da comitiva brasileira comendo pizza na
rua, em Nova York, porque seu líder não pode entrar em nenhum restaurante.
Promoção de olavista
O diplomata Roberto Goidanich assumiu
recentemente o Departamento de Índia, Sul e Sudeste da Ásia no Itamaraty.
Ministro de segunda classe (abaixo apenas de embaixador na carreira
diplomática), chefiava até julho a Fundação Alexandre de Gusmão (Funag), que
virou um parque de diversões olavista durante a gestão Ernesto Araújo.
Sob o comando de Goidanich, a Funag
promovia debates com blogueiros investigados por fake news e outros
ultraconservadores, sem pluralidade de ideias. Um dos palestrantes, então
assessor de Damares Alves, discorreu sobre “a nocividade do uso de máscaras”.
Herdeiro de trono extinto e trineto de Dom
Pedro II, Bertrand de Orleans e Bragança fez palestra na Funag e foi
apresentado na ocasião como “Sua Alteza Real e Imperial”. Ele contou à plateia
virtual que não existe racismo no Brasil e atacou os comunistas que, conforme
suas palavras, saquearam o país. Ora, pois: a família da majestade, ao voltar
para Lisboa em 1821, levou no porão do navio todo o dinheiro depositado no
Banco do Brasil.
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