EDITORIAL
Vergonha
O Estado de S. Paulo
Em discurso na ONU, como se estivesse falando a seus fanáticos apoiadores, Bolsonaro esbanjou ignorância, má-fé e oportunismo, expondo o País a vexame mundial
Há poucos dias, o presidente Jair
Bolsonaro, após reiteradas ameaças de golpe e seguidas demonstrações de
desapreço pelo decoro do cargo, comprometeu-se por escrito a dialogar. Como
previsto, no entanto, suas promessas de moderação e racionalidade na tal Declaração
à Nação não duraram nem um mês. Em discurso na ONU, Bolsonaro, como se
estivesse falando a seus fanáticos apoiadores, esbanjou ignorância, má-fé e
oportunismo, expondo o Brasil a um vexame mundial. Ou seja, foi o mesmo de
sempre.
Seu pronunciamento foi uma profusão de meias-verdades e mentiras completas, insistindo no negacionismo e na pregação para sua base eleitoral. Bolsonaro ignora a diferença entre discursar na Assembleia-Geral da ONU e falar no cercadinho do Palácio da Alvorada.
“O Brasil tem um presidente que acredita em
Deus, respeita a Constituição e seus militares, valoriza a família e deve
lealdade a seu povo”, disse Bolsonaro. Raras vezes se viu tanta falsidade em
uma só frase. Bolsonaro desrespeita a Constituição praticamente desde que tomou
posse. Quanto aos militares, não são poucos os que nas Forças Armadas
consideram que a associação com a irresponsabilidade bolsonarista vem
desgastando a imagem do Exército. Já em relação à família, a única que
Bolsonaro valoriza é a dele mesmo.
“Estávamos à beira do socialismo”, disse
Bolsonaro, sem qualquer respaldo nos fatos – que, para o bolsonarismo, não têm
valor. Importa apenas o discurso, voltado à manipulação e à desinformação.
“Apresento agora um novo Brasil com sua credibilidade já recuperada”, declarou
o presidente que transformou o País em pária internacional.
Em suas palavras, “promovemos o
ressurgimento do modal ferroviário”. A realidade: Bolsonaro editou uma
imprópria medida provisória sobre o tema, atropelando o Legislativo e a
segurança jurídica. “Grande avanço vem acontecendo na área do saneamento
básico”, disse Bolsonaro. Os fatos: o marco do saneamento foi aprovado, apesar
do desinteresse do Executivo.
“Nenhum país do mundo possui uma legislação
ambiental tão completa. Nosso Código Florestal deve servir de exemplo para
outros países”, disse Bolsonaro na ONU. Sim, o Código Florestal de 2012 é uma
legislação equilibrada, fruto de anos de trabalho e de negociação política – ou
seja, a antítese do bolsonarismo. Além de não ter promovido nenhuma lei
minimamente semelhante ao Código Florestal, Bolsonaro diminuiu os mecanismos de
controle ambiental e ainda teve um ministro do Meio Ambiente incluído em
inquérito sobre crimes ambientais.
“Sempre defendi combater o vírus e o
desemprego de forma simultânea e com a mesma responsabilidade”, disse aquele
que fugiu dos dois problemas com a mesma irresponsabilidade. Nas palavras de
Bolsonaro, a covid-19 sempre foi uma “gripezinha”. Por isso – e por tantas
outras omissões –, Bolsonaro não pode se vangloriar dos atuais números da
vacinação no Brasil. Os resultados de imunização da população foram obtidos
contra a vontade do Palácio do Planalto, graças ao esforço do SUS e de vários
governadores. Basta ver que Jair Bolsonaro é o único presidente do G-20 que se
recusou a tomar vacina contra a covid-19.
Para culminar a insensatez, Bolsonaro disse
apoiar “a autonomia do médico na busca do tratamento precoce”. Em outras
palavras, o presidente continua defendendo drogas amplamente descartadas como
tratamento contra a covid, enquanto se nega a tomar a vacina. A atitude
alinha-se à lógica bolsonarista, em que a verdade é tratada como inimiga. Basta
ver o que disse Bolsonaro sobre a atual situação econômica do País: “Na
economia, temos um dos melhores desempenhos entre os emergentes”.
Ao desprezar os fatos e a civilidade, Jair
Bolsonaro humilha e desonra o País internacionalmente. Os gestos obscenos do
ministro da Saúde contra manifestantes em Nova York não foram um deslize num
momento de destempero. Trata-se da expressão mais pura do bolsonarismo. Nada é
por acaso, como mostrou o discurso do presidente ontem. Nem mil Declarações
à Nação mudarão o fato de que Bolsonaro é e sempre será Bolsonaro.
O custo da informação confiável
O Estado de S. Paulo
Multiplicação do jornalismo amador torna mais importante o jornalismo profissional
A revolução digital abriu possibilidades
formidáveis. Literalmente na palma da mão, cada indivíduo tem o poder de
acessar instantaneamente todas as informações produzidas no planeta e, a um
tempo, se tornar, nas redes sociais, repórter, editor, articulista e
divulgador. Mas, ao contrário do que muitos pensam, essa multiplicação
infinitesimal do jornalismo amador torna mais importante, e não menos, o
jornalismo profissional. A sanidade do debate público no meio virtual depende
da valorização da informação confiável por parte das redes digitais. E a
remuneração das notícias apuradas pelos jornalistas e veiculadas pelas redes é
uma questão de justiça.
“Precisamos promover um ecossistema digital
saudável e equilibrado, no qual a opacidade dos algoritmos não acabe decidindo
que informações são relevantes para uma pessoa ou sociedade, e no qual a
desinformação possa ser combatida com um jornalismo profissional de qualidade”,
adverte um manifesto
de entidades que representam a mídia das três Américas, entre elas a Associação
Nacional de Jornais brasileira. “Para isso, é necessário que existam
meios sustentáveis, que recebam compensação pelo valor que geram em benefício
da comunidade.”
Uma pesquisa do Pew Research Center mostrou
que o aumento quantitativo de informações nas redes sociais é inversamente
proporcional ao aumento qualitativo: o público que as utiliza como principal
fonte de informação é menos engajado e menos informado em comparação com o
público de fontes como mídia impressa, TV, rádio ou sites de notícias. Em um
círculo vicioso, o público das redes é mais exposto à desinformação e mostra
menos capacidade de discernimento.
Mais grave é quando a amplificação da
desinformação é não apenas difusa, mas deliberadamente impulsionada por facções
da sociedade ou, pior, por políticos, partidos e mesmo governos. Todos os
indicadores evidenciam a escalada de uma indústria profissional de
desinformação. Como principal veículo dessa indústria, as redes têm sofrido
pressão em todo mundo por intervenções regulatórias. É no mínimo de seu
autointeresse – se o interesse público não bastasse – que elas se engajem no
combate à desinformação.
As armas mais poderosas nesse combate são
as notícias produzidas pela indústria de informação, e as redes têm cada vez
mais se municiado delas, destacando-as por meio de seus algoritmos. Isso atrai
usuários interessados em informações confiáveis, os quais, por sua vez, atraem
a publicidade.
Com esse antídoto o ambiente digital é
desintoxicado e, aparentemente, todos ganham – as redes, seus usuários e as
empresas que publicam seus produtos. Mas só aparentemente: quem mais tem
perdido é justamente quem produz o antídoto. As notícias apuradas pelas mídias
são veiculadas pelas redes na forma de trechos; os trechos são acessados e
compartilhados pelos usuários, sem que eles cheguem a ingressar nas plataformas
jornalísticas; e as receitas de publicidade são absorvidas pelas redes.
Com certa recalcitrância, gigantes como
Google e Facebook têm oferecido às mídias acordos de remuneração pelas licenças
de conteúdo. Mas o monopólio de facto das Big Techs faz com que as
condições de um “acordo” sejam distorcidas a ponto de a compensação ser, na
prática, uma discricionariedade unilateral.
Por isso, governos de todo o mundo estão
elaborando leis para garantir parâmetros de compensação ou ao menos de
negociação, grosso modo emulando para o mercado jornalístico um processo que
foi realizado para o mercado musical.
Foi para reiterar a necessidade de um
equilíbrio para os atores do ecossistema digital entre liberdade de expressão,
direitos autorais e propriedade intelectual que as entidades jornalísticas das
Américas publicaram seu manifesto.
As informações verídicas têm um valor
civilizacional – e também monetário, como bem sabem as redes que lucram com a
publicidade em torno delas. E o jornalismo que as produz tem um custo. Mas, por
qualquer critério concebível, esse custo compensa com sobras o prejuízo que a
desinformação impõe à sociedade e a cada cidadão.
A tensão política nas universidades
O Estado de S. Paulo
Na escolha de reitores, a demonstração do desmanche na educação e na ciência pelo governo
Desde que Jair Bolsonaro assumiu a Presidência
da República, há dois anos e oito meses, seu governo declarou guerra às 69
universidades federais. No início, tentou asfixiá-las financeiramente, por meio
de cortes orçamentários. Depois, passou a desqualificá-las, afirmando que elas
deixaram de ser um “ambiente de estudos” e se converteram em “lugar de greves,
arruaças e baderna”.
A ofensiva mais importante foi o modo como
Bolsonaro passou a escolher os novos reitores. Segundo a Lei n.º 9.192, que
entrou em vigor em 1995, o chefe do Executivo é obrigado a escolher o reitor e
o vice-reitor das universidades federais entre os nomes constantes de uma lista
tríplice elaborada ou endossada pelo respectivo colégio máximo, que é o
Conselho Universitário. Desde então, em respeito a uma reivindicação da comunidade
acadêmica, os presidentes da República, com raras exceções, passaram a indicar
o primeiro nome da lista.
Bolsonaro, porém, não hesitou em fazer
justamente o oposto de seus antecessores, rejeitando o primeiro colocado sob a
justificativa de que ele, por princípio, seria um esquerdista, uma vez que as
federais seriam um ambiente de “esquerda”. Assim que a comunidade acadêmica
passou a reagir a tanta sandice, Bolsonaro voltou a surpreender, baixando a
Medida Provisória (MP) n.º 914 no dia 24 de dezembro de 2019, e que foi
publicada por uma edição extra do Diário Oficial da União,
estabelecendo que o presidente da República não precisa acatar o nome vencedor
da lista tríplice. Como a Lei n.º 9.192/95 não determina quem dos três da lista
deverá ser escolhido, a MP era desnecessária. Todavia, como se tornou
corriqueiro em seu governo, Bolsonaro incluiu alguns jabutis no texto da MP,
determinando que o voto para reitor deveria ser feito “preferencialmente de
forma eletrônica” e permitindo ao nome por ele indicado para ocupar a reitoria
que escolhesse seu vice-reitor.
A partir daí, Bolsonaro passou a dar
preferência ao segundo ou até ao terceiro nome das listas tríplices. Desde
2019, 36% dos reitores escolhidos por ele não foram os mais votados, segundo
reportagem do Estado sobre os problemas causados por essas nomeações.
A reportagem mostra que, nas universidades em que o primeiro colocado nas
listas tríplices foi rejeitado, explodiram tensões políticas em decorrência de
acirramento partidário, decisões tomadas pelos novos reitores sem consulta aos
órgãos colegiados e denúncias de perseguições políticas.
Em algumas instituições, como a
Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), os abusos cometidos pelo
reitor escolhido por Bolsonaro chegaram a tal ponto que o Conselho
Universitário pediu sua destituição. Na Universidade Federal de São Paulo
(Unifesp), a reitoria soube pelo Diário Oficial que o
procurador-geral da instituição havia sido trocado por decisão direta do
Planalto, afrontando a autonomia universitária assegurada pela Constituição.
Diante da recusa da reitoria de dar posse ao novo procurador, ele fez um termo
de “autoposse”, o que dá a medida da quebra de hierarquia administrativa no
governo Bolsonaro. Na Universidade Federal do Ceará (UFC), quatro diretores de
faculdades entraram na Justiça contra o reitor, que recebeu apenas 4% dos votos
da comunidade acadêmica.
“O caos nas universidades federais só não
se instalou porque estamos em atividades remotas”, afirma Marcus David,
presidente da Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de
Ensino Superior (Andifes). “A UFRGS vive um vácuo de gestão”, afirma a diretora
da Faculdade de Educação, Liliane Giordani. Por causa dos problemas políticos e
administrativos criados por Bolsonaro na indicação de reitores, a maioria das
universidades federais até agora não conseguiu preparar o retorno para as
atividades presenciais.
Esse é mais um exemplo de como Bolsonaro desorganiza cada área do governo em que põe a mão. E é, também, mais uma demonstração inequívoca do desmanche que vem promovendo na educação e na ciência.
A realidade paralela de Bolsonaro
O Globo
Era esperado que o presidente Jair Bolsonaro tentasse polir a imagem de seu
governo no discurso de abertura da 76ª Assembleia Geral das Nações Unidas, em Nova
York. Bem que ele tentou. Pintou o retrato de uma economia vigorosa
que vence o desemprego e atrai capital estrangeiro para investir em
infraestrutura e tecnologia. De um país que deixou a corrupção para trás e está
preocupado em preservar a Amazônia e o meio ambiente, em reduzir emissões de
gases e garantir os direitos indígenas. De uma sociedade que está prestes a
vencer a pandemia.
Só que seu discurso não tem o menor amparo nos fatos. O
que disse, quando não era simplesmente mentira, repetia as fantasias
ideológicas da realidade paralela bolsonarista. Antes mesmo de completar três
minutos de discurso, Bolsonaro já havia feito pelo menos quatro declarações
falsas ou imprecisas. Teve o desplante de afirmar que desde o início do governo
não há “caso concreto” de corrupção (omitiu as rachadinhas, a CPI da Covid e o
desmonte da Operação Lava Jato sob seu beneplácito). Disse que o presidente
respeita a Constituição (esqueceu os ataques ao Supremo e ao Congresso), que
antes dele o o país estava “à beira do socialismo” (um delírio) e que, com ele
no poder, o Brasil recuperou credibilidade internacional (outro despropósito).
No universo paralelo de Bolsonaro, o Brasil
hoje se apresenta como “um dos melhores destinos” para o capital. No mundo duro
dos fatos, os investimentos diretos caíram pela metade em 2020 e, embora tenha
havido recuperação este ano, os investidores resistem a apostar aqui em virtude
do cenário político conturbado por ele próprio.
Numa manobra retórica clássica, Bolsonaro
usou as estatísticas para esconder a verdade. Citou uma redução pontual de
desmatamento, quando dados públicos reiteram os recordes de queimadas e
devastação amazônica. Mencionou a geração de empregos formais, quando os
desempregados passam de 14 milhões, e os que não trabalham ou desistiram de
procurar emprego são quase 29% da mão de obra. Por fim, citou o tamanho das
reservas indígenas, quando o respeito aos direitos dos povos originários no
Brasil é preocupação do Alto-Comissariado das Nações Unidas para Direitos
Humanos. Também mentiu de forma deslavada ao dizer que seu governo reforçou
recursos destinados a órgãos ambientais para zerar o desmatamento.
Na descrição de Bolsonaro, as manifestações
golpistas do 7 de Setembro foram as maiores da história (primeiro erro) e em
defesa da democracia (segundo erro). Noutra falácia, atribuiu às quarentenas
decretadas por prefeitos e governadores a responsabilidade pela inflação. A
dificuldade de conter os preços está hoje essencialmente ligada à incapacidade
de seu governo em apresentar uma perspectiva mínima de equilíbrio fiscal.
No ponto mais delirante, voltou a defender o famigerado “tratamento precoce” contra a Covid-19, desacreditado por evidências científicas avassaladoras. Declarou seu apoio à vacinação, ainda que não tenha tomado vacina e que seu governo as tenha desdenhado por meses enquanto se envolvia em negociatas obscuras, investia em cloroquina e outras curandeirices. O cúmulo do cinismo foi ter afirmado que “a história e a ciência saberão responsabilizar a todos”. Pois o relatório da CPI da Covid está prestes a considerá-lo o maior responsável pela tragédia que já matou quase 600 mil brasileiros.
Facebook e Google devem remunerar conteúdo
jornalístico de modo justo
O Globo
As principais associações que reúnem veículos da imprensa profissional nas
Américas, entre elas a brasileira Associação Nacional de Jornais (ANJ), a
Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP) e a americana News Media Alliance
(NMA), se reuniram para exigir num manifesto a remuneração justa pelo conteúdo
que fornecem às plataformas digitais, em especial Google e Facebook.
Uma inspiração é a nova lei australiana que
obriga as empresas digitais a alcançar um acordo com os produtores de notícias
para a divisão das receitas publicitárias, sob pena de o governo intervir
estabelecendo o preço a pagar. Outra são diretrizes de teor semelhante já
aprovadas ou em debate nos países da União Europeia.
A iniciativa é mais um passo no cerco
progressivo — e necessário — que as gigantes digitais vêm sofrendo no mundo
todo em virtude de práticas de negócios e atitudes políticas condenáveis. De um
lado, elas tentam se desvencilhar, por meio de legislação favorável em vários
países, de toda responsabilidade pelo conteúdo que veiculam e multiplicam,
contribuem para disseminar desinformação e desestabilizar regimes democráticos.
De outro, não abrem mão de exercer um
virtual monopólio sobre as receitas publicitárias derivadas do modelo de
negócios baseado na coleta em massa de dados da audiência. Dependem do conteúdo
gerado pelos outros para crescer e faturar mais — mas não remuneram os
produtores desse conteúdo de modo justo pelo trabalho. Se isso já seria
inaceitável para qualquer tipo de produção artística ou intelectual, torna-se
crítico no caso do jornalismo, atividade essencial para o vigor e a
sobrevivência de toda democracia.
Ao drenar mais de 80% das receitas
publicitárias, as plataformas digitais vão aos poucos sufocando o negócio das
empresas jornalísticas. Prejudicam a produção do noticiário de qualidade
necessário para a vigilância dos poderosos e sabotam o dever da imprensa de
oferecer ao cidadão informação confiável. Em particular, o jornalismo
investigativo é uma atividade cara, que depende de investimento por longo período
de tempo para um resultado incerto. Sem sustentação financeira, ele é o mais
ameaçado.
“Precisamos promover um ecossistema digital
saudável e equilibrado, no qual a opacidade dos algoritmos não acabe decidindo
que informações são relevantes para uma pessoa ou sociedade, e no qual a
desinformação possa ser combatida com um jornalismo profissional e de
qualidade”, afirma o manifesto. “Para isso, é necessário que existam meios
sustentáveis, que recebam compensação pelo valor que geram em benefício da comunidade.”
Na forma como está hoje, a situação é
intolerável. As plataformas fizeram tentativas de estabelecer remuneração por
conteúdo em alguns países, mas elas ainda são insatisfatórias. A diferença no
poder de barganha entre as partes exige o envolvimento do poder público na
busca de regras justas, em nome do interesse do cidadão. Do contrário, os
riscos da desinformação continuarão a assombrar as democracias.
Pária na calçada
Folha de S. Paulo
Bolsonaro usa assembleia da ONU para
delírios voltados à minoria que o apoia
Jair Bolsonaro deu novamente as costas para
o mundo ao se apresentar no púlpito da Organização das Nações Unidas para discursar na
abertura da sua assembleia anual, nesta terça-feira (21).
Como em ocasiões anteriores, sua fala foi
dirigida especialmente para a minoria que ainda apoia seu desacreditado
governo, de cuja fidelidade o mandatário depende para sustentar sua campanha à
reeleição no ano que vem.
Algo mais moderado, Bolsonaro mostrou
preocupação em abordar temas que, em seu governo, geram desgaste para a imagem
do país. Em que pese a tentativa, tudo o que tinha a oferecer eram fantasias
que só seduzem os mais radicais de seus adeptos.
Ao discorrer sobre a política ambiental,
distorceu números, minimizou receios e enalteceu a legislação brasileira —a
mesma que ele busca enfraquecer sem descanso desde que tomou posse.
Numa tentativa covarde e canhestra de se
eximir de responsabilidade pelo fracasso no enfrentamento da pandemia e na
recuperação da atividade econômica, culpou governadores e prefeitos pela fome,
pelo desemprego e até pelo descontrole da inflação.
Destacou a vacinação no país, como se o mundo
ignorasse as medidas que tomou para sabotar os esforços dos governos locais e
sua negligência na crise sanitária. Teve ainda a desfaçatez de oferecer lições
a outros governantes.
Voltou a defender o uso de remédios que se
provaram ineficazes contra a Covid e criticou os países que passaram a exigir
comprovantes de vacinação em suas fronteiras.
Com a economia andando de lado, disse que
não há no mundo porto mais seguro para os investidores do que o Brasil e
apontou como prova da confiança em seu governo o apoio das multidões sectárias
que foram às ruas atender a seus apelos golpistas no 7 de Setembro.
Para frustração dos diplomatas ingênuos que
sonhavam com a aparição de um estadista magnânimo no palco da ONU, sugestões de
moderação do discurso foram ignoradas, e Bolsonaro pôde se apresentar mais uma
vez como o radical que seus seguidores idolatram.
Se o contraste entre as palavras e a
realidade é gritante, as imagens produzidas pelo mandatário em sua passagem por
Nova York deixaram claras suas intenções.
Com entrada restrita nos restaurantes da
cidade por não ter se vacinado, o chefe do Executivo fez questão de
divulgar imagens em
que comia pizza com assessores na calçada. Em outra ocasião, seu
ministro da Saúde permitiu-se fazer, de dentro de um carro, um gesto obsceno
para manifestantes.
Ao ostentar o negacionismo, Bolsonaro acena
para o eleitor que ainda vê nele o rebelde transgressor que prometia enfrentar
as elites e consertar o país. Para o resto do mundo, fica apenas mais um
retrato do isolamento do presidente que não governa e não se importa em ser
visto como pária.
O enigma do ozônio
Folha de S. Paulo
Falha na camada protetora sobre o polo Sul
pode resultar do aquecimento global
O buraco de ozônio, anomalia atmosférica
que se apresenta sobre a Antártida a cada primavera do hemisfério Sul, segue
desafiando climatologistas a explicar sua ligação com o aquecimento
global.Neste ano o rombo cresce acima da média e já supera o
tamanho do próprio continente austral.
A falha se espraia por algo entre 22 e 23
milhões de km², quase três vezes a área do Brasil. Como deve progredir até
outubro, é possível que supere o recorde de 2006 (25 milhões de km²), entre as
medições realizadas desde 1979.
Em 2020 o buraco também aumentou de modo
incomum e se fechou só no final de dezembro. Não se trata de tendência clara,
porém, uma vez que em 2019 o fenômeno foi o menos intenso já registrado.
O ozônio, cuja molécula reúne três átomos
de oxigênio, é um gás paradoxal. Próximo da superfície terrestre, altas
concentrações surgem como poluente causador de problemas respiratórios. Na
estratosfera, acima de 10 km de altitude, filtra raios ultravioleta que causam
danos a seres vivos.
A destruição ocorre em baixas temperaturas
sob ação de substâncias contendo cloro e bromo, como os clorofluorcarbonetos
banidos em 1987 pelo Protocolo de Montreal. No entanto ainda ocorrem emissões
irregulares desses gases, ao que tudo indica na China.
A poluição remanescente não parece bastar
como explicação para o aumento nestes dois anos. As suspeitas recaem sobre as
mudanças climáticas ocasionadas pela atmosfera que se aquece com a emissão de
gases do efeito estufa, como dióxido de carbono e metano.
O buraco de ozônio se abre sobre a
Antártida porque ali se formam nuvens estratosféricas com condições ideais para
romper moléculas do gás. O aquecimento global estaria dificultando o surgimento
de tais nuvens neste período do ano, mas mais pesquisa se faz necessária para
comprovar essa hipótese.
Se a atividade humana sobre o planeta se tornou poderosa a ponto de modificar sua atmosfera em dimensão arriscada, dela também dependerá a contenção dos efeitos deletérios. Para tanto será preciso fazer valer as provisões de Montreal e tornar mais ambiciosas as da reunião que se realizará em Glasgow dentro de pouco mais de um mês.
Evergrande é problema chinês com impacto
global mitigado
Valor Econômico
A única atitude previsível é que Pequim fará o que puder, e pode quase tudo, para evitar uma crise sistêmica
Há anos o governo chinês vem controlando
uma bolha no setor imobiliário, que pode ter começado a estourar agora. Depois
de colocar a mão pesada nas big techs chinesas e suas práticas
anticompetitivas, parece ter chegado a hora de limitar a farra dos grandes
incorporadores imobiliários, depois que o segundo maior do país, Evergrande,
afundou sob uma montanha de débitos impagáveis - US$ 306 bilhões, US$ 142
bilhões a curto prazo. A alta alavancagem é generalizada em um setor no qual a
demanda está regredindo - houve queda de 20% em agosto em relação ao mesmo mês
de 2020 -, o que sugere tempos difíceis para empresas superendividadas e um
desafio enorme para o todo poderoso governo de Xi Jinping.
Os efeitos da quebra da Evergrande sobre os
mercados financeiros mundiais foram superavaliados. O episódio da quebra do
Lehman Brothers foi fruto de uma desregulamentação irresponsável do setor
financeiro. No caso chinês, a incorporadora entrou em apuros reais quando o
governo chinês tentou pôr um freio em um setor muito alavancado, regulando a
tomada de risco. Além disso, os bancos chineses são todos estatais e as
operações de resgate dependem da decisão de poucas pessoas na cúpula do governo
e do Partido Comunista. Bancos e mercados do país não têm amplos vasos comunicantes
com os do resto do mundo. A crise pode ser isolada, até certo ponto, exceto
para fundos estrangeiros que investem em ativos imobiliários.
Já os efeitos globais de uma desaceleração
da China, em curso antes da quebra da incorporadora, são significativos. O
setor imobiliário, direta e indiretamente, compõe ao menos 25% do PIB chinês.
Ele consome de 5% a 20% da demanda global de aço, cobre, zinco, níquel e
alumínio e o impacto de uma forte retração no segmento não é desprezível. Uma
redução no PIB da China, que com os EUA são os motores do crescimento mundial,
pode tirar alguns pontos percentuais da expansão global.
O governo chinês está diante de uma grande
encrenca, para a qual não há saídas fáceis. Nem toda a dívida da Evergrande e
dos incorporadores está nas mãos do sistema financeiro estatal - a que está,
segundo relatos, é bem distribuída entre as instituições. A bolha de crédito,
inclusive imobiliário, nutriu um alentado sistema financeiro paralelo, estimado
em US$ 3 trilhões (mais que o PIB brasileiro, por comparação). Incorporadores e
financiadores formaram trusts para transformar em veículos de investimento os
papéis lastreados nos imóveis que prometeram construir, dando liquidez a uma
corrida especulativa por terras e oferta de imóveis. Durante anos a Evergrande
não teve caixa suficiente para os investimentos que fazia e “pedalava” os
projetos que executava com o dinheiro do lançamento de títulos para novos
projetos. Não estava sozinha nisso.
O problema se complica mais com a atuação
dos governos provinciais e municipais, que obtinham receitas importantes da
venda de terras para os incorporadores e participavam como chamarizes de
veículos de investimentos para o povo, com diversificação em imóveis,
infraestrutura etc. O governo central deixou a especulação correr solta por um
bom tempo porque auxiliava suas metas de crescimento - e a dos governos locais,
cujas lideranças almejam subir na hierarquia do partido - e supria os déficits
habitacionais de uma população migrante para as cidades. Há um limite para esse
processo, que parece ter chegado, com o acúmulo de imóveis vazios, mesmo com
descontos expressivos para a aquisição - caso claro de super oferta.
A quebra da Evergrande significa que o
limite deve ter chegado. Com alavancagem, a empresa adquiriu terra suficiente
para abrigar a população de Portugal, ao custo de uma dívida maior do que a da
Nova Zelândia (FT, novembro de 2020). Em agosto de 2020, o governo traçou as
“três linhas vermelhas” para conter a febre especulativa no setor. Os passivos
não poderiam ultrapassar 70% dos ativos, a relação entre caixa e dívida de
curto prazo teria de ser maior que 1 e a de dívida líquida sobre capital, menor
que 1. A Evergrande ultrapassou todas essas linhas.
Como sanear o setor e reduzir a alavancagem
sem provocar queda vertiginosa em sua atividade é o primeiro desafio. O segundo
é reconstruir a confiança dos compradores de imóveis e investidores, que se
confundem. Os incorporadores criaram fundos cujos cotistas estão sendo vítimas
do calote. A única atitude previsível é que Pequim fará o que puder, e pode
quase tudo, para evitar uma crise sistêmica.
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