quarta-feira, 22 de setembro de 2021

O que a mídia pensa - Editoriais / Opiniões

EDITORIAL

Vergonha

O Estado de S. Paulo

Em discurso na ONU, como se estivesse falando a seus fanáticos apoiadores, Bolsonaro esbanjou ignorância, má-fé e oportunismo, expondo o País a vexame mundial

Há poucos dias, o presidente Jair Bolsonaro, após reiteradas ameaças de golpe e seguidas demonstrações de desapreço pelo decoro do cargo, comprometeu-se por escrito a dialogar. Como previsto, no entanto, suas promessas de moderação e racionalidade na tal Declaração à Nação não duraram nem um mês. Em discurso na ONU, Bolsonaro, como se estivesse falando a seus fanáticos apoiadores, esbanjou ignorância, má-fé e oportunismo, expondo o Brasil a um vexame mundial. Ou seja, foi o mesmo de sempre.

Seu pronunciamento foi uma profusão de meias-verdades e mentiras completas, insistindo no negacionismo e na pregação para sua base eleitoral. Bolsonaro ignora a diferença entre discursar na Assembleia-Geral da ONU e falar no cercadinho do Palácio da Alvorada.

“O Brasil tem um presidente que acredita em Deus, respeita a Constituição e seus militares, valoriza a família e deve lealdade a seu povo”, disse Bolsonaro. Raras vezes se viu tanta falsidade em uma só frase. Bolsonaro desrespeita a Constituição praticamente desde que tomou posse. Quanto aos militares, não são poucos os que nas Forças Armadas consideram que a associação com a irresponsabilidade bolsonarista vem desgastando a imagem do Exército. Já em relação à família, a única que Bolsonaro valoriza é a dele mesmo.

“Estávamos à beira do socialismo”, disse Bolsonaro, sem qualquer respaldo nos fatos – que, para o bolsonarismo, não têm valor. Importa apenas o discurso, voltado à manipulação e à desinformação. “Apresento agora um novo Brasil com sua credibilidade já recuperada”, declarou o presidente que transformou o País em pária internacional.

Em suas palavras, “promovemos o ressurgimento do modal ferroviário”. A realidade: Bolsonaro editou uma imprópria medida provisória sobre o tema, atropelando o Legislativo e a segurança jurídica. “Grande avanço vem acontecendo na área do saneamento básico”, disse Bolsonaro. Os fatos: o marco do saneamento foi aprovado, apesar do desinteresse do Executivo.

“Nenhum país do mundo possui uma legislação ambiental tão completa. Nosso Código Florestal deve servir de exemplo para outros países”, disse Bolsonaro na ONU. Sim, o Código Florestal de 2012 é uma legislação equilibrada, fruto de anos de trabalho e de negociação política – ou seja, a antítese do bolsonarismo. Além de não ter promovido nenhuma lei minimamente semelhante ao Código Florestal, Bolsonaro diminuiu os mecanismos de controle ambiental e ainda teve um ministro do Meio Ambiente incluído em inquérito sobre crimes ambientais.

“Sempre defendi combater o vírus e o desemprego de forma simultânea e com a mesma responsabilidade”, disse aquele que fugiu dos dois problemas com a mesma irresponsabilidade. Nas palavras de Bolsonaro, a covid-19 sempre foi uma “gripezinha”. Por isso – e por tantas outras omissões –, Bolsonaro não pode se vangloriar dos atuais números da vacinação no Brasil. Os resultados de imunização da população foram obtidos contra a vontade do Palácio do Planalto, graças ao esforço do SUS e de vários governadores. Basta ver que Jair Bolsonaro é o único presidente do G-20 que se recusou a tomar vacina contra a covid-19.

Para culminar a insensatez, Bolsonaro disse apoiar “a autonomia do médico na busca do tratamento precoce”. Em outras palavras, o presidente continua defendendo drogas amplamente descartadas como tratamento contra a covid, enquanto se nega a tomar a vacina. A atitude alinha-se à lógica bolsonarista, em que a verdade é tratada como inimiga. Basta ver o que disse Bolsonaro sobre a atual situação econômica do País: “Na economia, temos um dos melhores desempenhos entre os emergentes”.

Ao desprezar os fatos e a civilidade, Jair Bolsonaro humilha e desonra o País internacionalmente. Os gestos obscenos do ministro da Saúde contra manifestantes em Nova York não foram um deslize num momento de destempero. Trata-se da expressão mais pura do bolsonarismo. Nada é por acaso, como mostrou o discurso do presidente ontem. Nem mil Declarações à Nação mudarão o fato de que Bolsonaro é e sempre será Bolsonaro.

O custo da informação confiável

O Estado de S. Paulo

Multiplicação do jornalismo amador torna mais importante o jornalismo profissional

A revolução digital abriu possibilidades formidáveis. Literalmente na palma da mão, cada indivíduo tem o poder de acessar instantaneamente todas as informações produzidas no planeta e, a um tempo, se tornar, nas redes sociais, repórter, editor, articulista e divulgador. Mas, ao contrário do que muitos pensam, essa multiplicação infinitesimal do jornalismo amador torna mais importante, e não menos, o jornalismo profissional. A sanidade do debate público no meio virtual depende da valorização da informação confiável por parte das redes digitais. E a remuneração das notícias apuradas pelos jornalistas e veiculadas pelas redes é uma questão de justiça.

“Precisamos promover um ecossistema digital saudável e equilibrado, no qual a opacidade dos algoritmos não acabe decidindo que informações são relevantes para uma pessoa ou sociedade, e no qual a desinformação possa ser combatida com um jornalismo profissional de qualidade”, adverte um manifesto de entidades que representam a mídia das três Américas, entre elas a Associação Nacional de Jornais brasileira. “Para isso, é necessário que existam meios sustentáveis, que recebam compensação pelo valor que geram em benefício da comunidade.”

Uma pesquisa do Pew Research Center mostrou que o aumento quantitativo de informações nas redes sociais é inversamente proporcional ao aumento qualitativo: o público que as utiliza como principal fonte de informação é menos engajado e menos informado em comparação com o público de fontes como mídia impressa, TV, rádio ou sites de notícias. Em um círculo vicioso, o público das redes é mais exposto à desinformação e mostra menos capacidade de discernimento.

Mais grave é quando a amplificação da desinformação é não apenas difusa, mas deliberadamente impulsionada por facções da sociedade ou, pior, por políticos, partidos e mesmo governos. Todos os indicadores evidenciam a escalada de uma indústria profissional de desinformação. Como principal veículo dessa indústria, as redes têm sofrido pressão em todo mundo por intervenções regulatórias. É no mínimo de seu autointeresse – se o interesse público não bastasse – que elas se engajem no combate à desinformação.

As armas mais poderosas nesse combate são as notícias produzidas pela indústria de informação, e as redes têm cada vez mais se municiado delas, destacando-as por meio de seus algoritmos. Isso atrai usuários interessados em informações confiáveis, os quais, por sua vez, atraem a publicidade.

Com esse antídoto o ambiente digital é desintoxicado e, aparentemente, todos ganham – as redes, seus usuários e as empresas que publicam seus produtos. Mas só aparentemente: quem mais tem perdido é justamente quem produz o antídoto. As notícias apuradas pelas mídias são veiculadas pelas redes na forma de trechos; os trechos são acessados e compartilhados pelos usuários, sem que eles cheguem a ingressar nas plataformas jornalísticas; e as receitas de publicidade são absorvidas pelas redes.

Com certa recalcitrância, gigantes como Google e Facebook têm oferecido às mídias acordos de remuneração pelas licenças de conteúdo. Mas o monopólio de facto das Big Techs faz com que as condições de um “acordo” sejam distorcidas a ponto de a compensação ser, na prática, uma discricionariedade unilateral.

Por isso, governos de todo o mundo estão elaborando leis para garantir parâmetros de compensação ou ao menos de negociação, grosso modo emulando para o mercado jornalístico um processo que foi realizado para o mercado musical.

Foi para reiterar a necessidade de um equilíbrio para os atores do ecossistema digital entre liberdade de expressão, direitos autorais e propriedade intelectual que as entidades jornalísticas das Américas publicaram seu manifesto.

As informações verídicas têm um valor civilizacional – e também monetário, como bem sabem as redes que lucram com a publicidade em torno delas. E o jornalismo que as produz tem um custo. Mas, por qualquer critério concebível, esse custo compensa com sobras o prejuízo que a desinformação impõe à sociedade e a cada cidadão.

A tensão política nas universidades

O Estado de S. Paulo

Na escolha de reitores, a demonstração do desmanche na educação e na ciência pelo governo

Desde que Jair Bolsonaro assumiu a Presidência da República, há dois anos e oito meses, seu governo declarou guerra às 69 universidades federais. No início, tentou asfixiá-las financeiramente, por meio de cortes orçamentários. Depois, passou a desqualificá-las, afirmando que elas deixaram de ser um “ambiente de estudos” e se converteram em “lugar de greves, arruaças e baderna”.

A ofensiva mais importante foi o modo como Bolsonaro passou a escolher os novos reitores. Segundo a Lei n.º 9.192, que entrou em vigor em 1995, o chefe do Executivo é obrigado a escolher o reitor e o vice-reitor das universidades federais entre os nomes constantes de uma lista tríplice elaborada ou endossada pelo respectivo colégio máximo, que é o Conselho Universitário. Desde então, em respeito a uma reivindicação da comunidade acadêmica, os presidentes da República, com raras exceções, passaram a indicar o primeiro nome da lista.

Bolsonaro, porém, não hesitou em fazer justamente o oposto de seus antecessores, rejeitando o primeiro colocado sob a justificativa de que ele, por princípio, seria um esquerdista, uma vez que as federais seriam um ambiente de “esquerda”. Assim que a comunidade acadêmica passou a reagir a tanta sandice, Bolsonaro voltou a surpreender, baixando a Medida Provisória (MP) n.º 914 no dia 24 de dezembro de 2019, e que foi publicada por uma edição extra do Diário Oficial da União, estabelecendo que o presidente da República não precisa acatar o nome vencedor da lista tríplice. Como a Lei n.º 9.192/95 não determina quem dos três da lista deverá ser escolhido, a MP era desnecessária. Todavia, como se tornou corriqueiro em seu governo, Bolsonaro incluiu alguns jabutis no texto da MP, determinando que o voto para reitor deveria ser feito “preferencialmente de forma eletrônica” e permitindo ao nome por ele indicado para ocupar a reitoria que escolhesse seu vice-reitor.

A partir daí, Bolsonaro passou a dar preferência ao segundo ou até ao terceiro nome das listas tríplices. Desde 2019, 36% dos reitores escolhidos por ele não foram os mais votados, segundo reportagem do Estado sobre os problemas causados por essas nomeações. A reportagem mostra que, nas universidades em que o primeiro colocado nas listas tríplices foi rejeitado, explodiram tensões políticas em decorrência de acirramento partidário, decisões tomadas pelos novos reitores sem consulta aos órgãos colegiados e denúncias de perseguições políticas.

Em algumas instituições, como a Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), os abusos cometidos pelo reitor escolhido por Bolsonaro chegaram a tal ponto que o Conselho Universitário pediu sua destituição. Na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), a reitoria soube pelo Diário Oficial que o procurador-geral da instituição havia sido trocado por decisão direta do Planalto, afrontando a autonomia universitária assegurada pela Constituição. Diante da recusa da reitoria de dar posse ao novo procurador, ele fez um termo de “autoposse”, o que dá a medida da quebra de hierarquia administrativa no governo Bolsonaro. Na Universidade Federal do Ceará (UFC), quatro diretores de faculdades entraram na Justiça contra o reitor, que recebeu apenas 4% dos votos da comunidade acadêmica.

“O caos nas universidades federais só não se instalou porque estamos em atividades remotas”, afirma Marcus David, presidente da Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes). “A UFRGS vive um vácuo de gestão”, afirma a diretora da Faculdade de Educação, Liliane Giordani. Por causa dos problemas políticos e administrativos criados por Bolsonaro na indicação de reitores, a maioria das universidades federais até agora não conseguiu preparar o retorno para as atividades presenciais. 

Esse é mais um exemplo de como Bolsonaro desorganiza cada área do governo em que põe a mão. E é, também, mais uma demonstração inequívoca do desmanche que vem promovendo na educação e na ciência. 

A realidade paralela de Bolsonaro

O Globo


Era esperado que o presidente Jair Bolsonaro tentasse polir a imagem de seu governo no discurso de abertura da 76ª Assembleia Geral das Nações Unidas, em Nova York. Bem que ele tentou. Pintou o retrato de uma economia vigorosa que vence o desemprego e atrai capital estrangeiro para investir em infraestrutura e tecnologia. De um país que deixou a corrupção para trás e está preocupado em preservar a Amazônia e o meio ambiente, em reduzir emissões de gases e garantir os direitos indígenas. De uma sociedade que está prestes a vencer a pandemia.

Só que seu discurso não tem o menor amparo nos fatos. O que disse, quando não era simplesmente mentira, repetia as fantasias ideológicas da realidade paralela bolsonarista. Antes mesmo de completar três minutos de discurso, Bolsonaro já havia feito pelo menos quatro declarações falsas ou imprecisas. Teve o desplante de afirmar que desde o início do governo não há “caso concreto” de corrupção (omitiu as rachadinhas, a CPI da Covid e o desmonte da Operação Lava Jato sob seu beneplácito). Disse que o presidente respeita a Constituição (esqueceu os ataques ao Supremo e ao Congresso), que antes dele o o país estava “à beira do socialismo” (um delírio) e que, com ele no poder, o Brasil recuperou credibilidade internacional (outro despropósito).

No universo paralelo de Bolsonaro, o Brasil hoje se apresenta como “um dos melhores destinos” para o capital. No mundo duro dos fatos, os investimentos diretos caíram pela metade em 2020 e, embora tenha havido recuperação este ano, os investidores resistem a apostar aqui em virtude do cenário político conturbado por ele próprio.

Numa manobra retórica clássica, Bolsonaro usou as estatísticas para esconder a verdade. Citou uma redução pontual de desmatamento, quando dados públicos reiteram os recordes de queimadas e devastação amazônica. Mencionou a geração de empregos formais, quando os desempregados passam de 14 milhões, e os que não trabalham ou desistiram de procurar emprego são quase 29% da mão de obra. Por fim, citou o tamanho das reservas indígenas, quando o respeito aos direitos dos povos originários no Brasil é preocupação do Alto-Comissariado das Nações Unidas para Direitos Humanos. Também mentiu de forma deslavada ao dizer que seu governo reforçou recursos destinados a órgãos ambientais para zerar o desmatamento.

Na descrição de Bolsonaro, as manifestações golpistas do 7 de Setembro foram as maiores da história (primeiro erro) e em defesa da democracia (segundo erro). Noutra falácia, atribuiu às quarentenas decretadas por prefeitos e governadores a responsabilidade pela inflação. A dificuldade de conter os preços está hoje essencialmente ligada à incapacidade de seu governo em apresentar uma perspectiva mínima de equilíbrio fiscal.

No ponto mais delirante, voltou a defender o famigerado “tratamento precoce” contra a Covid-19, desacreditado por evidências científicas avassaladoras. Declarou seu apoio à vacinação, ainda que não tenha tomado vacina e que seu governo as tenha desdenhado por meses enquanto se envolvia em negociatas obscuras, investia em cloroquina e outras curandeirices. O cúmulo do cinismo foi ter afirmado que “a história e a ciência saberão responsabilizar a todos”. Pois o relatório da CPI da Covid está prestes a considerá-lo o maior responsável pela tragédia que já matou quase 600 mil brasileiros.

Facebook e Google devem remunerar conteúdo jornalístico de modo justo

O Globo

As principais associações que reúnem veículos da imprensa profissional nas Américas, entre elas a brasileira Associação Nacional de Jornais (ANJ), a Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP) e a americana News Media Alliance (NMA), se reuniram para exigir num manifesto a remuneração justa pelo conteúdo que fornecem às plataformas digitais, em especial Google e Facebook.

Uma inspiração é a nova lei australiana que obriga as empresas digitais a alcançar um acordo com os produtores de notícias para a divisão das receitas publicitárias, sob pena de o governo intervir estabelecendo o preço a pagar. Outra são diretrizes de teor semelhante já aprovadas ou em debate nos países da União Europeia.

A iniciativa é mais um passo no cerco progressivo — e necessário — que as gigantes digitais vêm sofrendo no mundo todo em virtude de práticas de negócios e atitudes políticas condenáveis. De um lado, elas tentam se desvencilhar, por meio de legislação favorável em vários países, de toda responsabilidade pelo conteúdo que veiculam e multiplicam, contribuem para disseminar desinformação e desestabilizar regimes democráticos.

De outro, não abrem mão de exercer um virtual monopólio sobre as receitas publicitárias derivadas do modelo de negócios baseado na coleta em massa de dados da audiência. Dependem do conteúdo gerado pelos outros para crescer e faturar mais — mas não remuneram os produtores desse conteúdo de modo justo pelo trabalho. Se isso já seria inaceitável para qualquer tipo de produção artística ou intelectual, torna-se crítico no caso do jornalismo, atividade essencial para o vigor e a sobrevivência de toda democracia.

Ao drenar mais de 80% das receitas publicitárias, as plataformas digitais vão aos poucos sufocando o negócio das empresas jornalísticas. Prejudicam a produção do noticiário de qualidade necessário para a vigilância dos poderosos e sabotam o dever da imprensa de oferecer ao cidadão informação confiável. Em particular, o jornalismo investigativo é uma atividade cara, que depende de investimento por longo período de tempo para um resultado incerto. Sem sustentação financeira, ele é o mais ameaçado.

“Precisamos promover um ecossistema digital saudável e equilibrado, no qual a opacidade dos algoritmos não acabe decidindo que informações são relevantes para uma pessoa ou sociedade, e no qual a desinformação possa ser combatida com um jornalismo profissional e de qualidade”, afirma o manifesto. “Para isso, é necessário que existam meios sustentáveis, que recebam compensação pelo valor que geram em benefício da comunidade.”

Na forma como está hoje, a situação é intolerável. As plataformas fizeram tentativas de estabelecer remuneração por conteúdo em alguns países, mas elas ainda são insatisfatórias. A diferença no poder de barganha entre as partes exige o envolvimento do poder público na busca de regras justas, em nome do interesse do cidadão. Do contrário, os riscos da desinformação continuarão a assombrar as democracias.

Pária na calçada

Folha de S. Paulo

Bolsonaro usa assembleia da ONU para delírios voltados à minoria que o apoia

Jair Bolsonaro deu novamente as costas para o mundo ao se apresentar no púlpito da Organização das Nações Unidas para discursar na abertura da sua assembleia anual, nesta terça-feira (21).

Como em ocasiões anteriores, sua fala foi dirigida especialmente para a minoria que ainda apoia seu desacreditado governo, de cuja fidelidade o mandatário depende para sustentar sua campanha à reeleição no ano que vem.

Algo mais moderado, Bolsonaro mostrou preocupação em abordar temas que, em seu governo, geram desgaste para a imagem do país. Em que pese a tentativa, tudo o que tinha a oferecer eram fantasias que só seduzem os mais radicais de seus adeptos.

Ao discorrer sobre a política ambiental, distorceu números, minimizou receios e enalteceu a legislação brasileira —a mesma que ele busca enfraquecer sem descanso desde que tomou posse.

Numa tentativa covarde e canhestra de se eximir de responsabilidade pelo fracasso no enfrentamento da pandemia e na recuperação da atividade econômica, culpou governadores e prefeitos pela fome, pelo desemprego e até pelo descontrole da inflação.

Destacou a vacinação no país, como se o mundo ignorasse as medidas que tomou para sabotar os esforços dos governos locais e sua negligência na crise sanitária. Teve ainda a desfaçatez de oferecer lições a outros governantes.

Voltou a defender o uso de remédios que se provaram ineficazes contra a Covid e criticou os países que passaram a exigir comprovantes de vacinação em suas fronteiras.

Com a economia andando de lado, disse que não há no mundo porto mais seguro para os investidores do que o Brasil e apontou como prova da confiança em seu governo o apoio das multidões sectárias que foram às ruas atender a seus apelos golpistas no 7 de Setembro.

Para frustração dos diplomatas ingênuos que sonhavam com a aparição de um estadista magnânimo no palco da ONU, sugestões de moderação do discurso foram ignoradas, e Bolsonaro pôde se apresentar mais uma vez como o radical que seus seguidores idolatram.

Se o contraste entre as palavras e a realidade é gritante, as imagens produzidas pelo mandatário em sua passagem por Nova York deixaram claras suas intenções.

Com entrada restrita nos restaurantes da cidade por não ter se vacinado, o chefe do Executivo fez questão de divulgar imagens em que comia pizza com assessores na calçada. Em outra ocasião, seu ministro da Saúde permitiu-se fazer, de dentro de um carro, um gesto obsceno para manifestantes.

Ao ostentar o negacionismo, Bolsonaro acena para o eleitor que ainda vê nele o rebelde transgressor que prometia enfrentar as elites e consertar o país. Para o resto do mundo, fica apenas mais um retrato do isolamento do presidente que não governa e não se importa em ser visto como pária.

O enigma do ozônio

Folha de S. Paulo

Falha na camada protetora sobre o polo Sul pode resultar do aquecimento global

O buraco de ozônio, anomalia atmosférica que se apresenta sobre a Antártida a cada primavera do hemisfério Sul, segue desafiando climatologistas a explicar sua ligação com o aquecimento global.Neste ano o rombo cresce acima da média e já supera o tamanho do próprio continente austral.

A falha se espraia por algo entre 22 e 23 milhões de km², quase três vezes a área do Brasil. Como deve progredir até outubro, é possível que supere o recorde de 2006 (25 milhões de km²), entre as medições realizadas desde 1979.

Em 2020 o buraco também aumentou de modo incomum e se fechou só no final de dezembro. Não se trata de tendência clara, porém, uma vez que em 2019 o fenômeno foi o menos intenso já registrado.

O ozônio, cuja molécula reúne três átomos de oxigênio, é um gás paradoxal. Próximo da superfície terrestre, altas concentrações surgem como poluente causador de problemas respiratórios. Na estratosfera, acima de 10 km de altitude, filtra raios ultravioleta que causam danos a seres vivos.

A destruição ocorre em baixas temperaturas sob ação de substâncias contendo cloro e bromo, como os clorofluorcarbonetos banidos em 1987 pelo Protocolo de Montreal. No entanto ainda ocorrem emissões irregulares desses gases, ao que tudo indica na China.

A poluição remanescente não parece bastar como explicação para o aumento nestes dois anos. As suspeitas recaem sobre as mudanças climáticas ocasionadas pela atmosfera que se aquece com a emissão de gases do efeito estufa, como dióxido de carbono e metano.

O buraco de ozônio se abre sobre a Antártida porque ali se formam nuvens estratosféricas com condições ideais para romper moléculas do gás. O aquecimento global estaria dificultando o surgimento de tais nuvens neste período do ano, mas mais pesquisa se faz necessária para comprovar essa hipótese.

Se a atividade humana sobre o planeta se tornou poderosa a ponto de modificar sua atmosfera em dimensão arriscada, dela também dependerá a contenção dos efeitos deletérios. Para tanto será preciso fazer valer as provisões de Montreal e tornar mais ambiciosas as da reunião que se realizará em Glasgow dentro de pouco mais de um mês.

Evergrande é problema chinês com impacto global mitigado

Valor Econômico

A única atitude previsível é que Pequim fará o que puder, e pode quase tudo, para evitar uma crise sistêmica

Há anos o governo chinês vem controlando uma bolha no setor imobiliário, que pode ter começado a estourar agora. Depois de colocar a mão pesada nas big techs chinesas e suas práticas anticompetitivas, parece ter chegado a hora de limitar a farra dos grandes incorporadores imobiliários, depois que o segundo maior do país, Evergrande, afundou sob uma montanha de débitos impagáveis - US$ 306 bilhões, US$ 142 bilhões a curto prazo. A alta alavancagem é generalizada em um setor no qual a demanda está regredindo - houve queda de 20% em agosto em relação ao mesmo mês de 2020 -, o que sugere tempos difíceis para empresas superendividadas e um desafio enorme para o todo poderoso governo de Xi Jinping.

Os efeitos da quebra da Evergrande sobre os mercados financeiros mundiais foram superavaliados. O episódio da quebra do Lehman Brothers foi fruto de uma desregulamentação irresponsável do setor financeiro. No caso chinês, a incorporadora entrou em apuros reais quando o governo chinês tentou pôr um freio em um setor muito alavancado, regulando a tomada de risco. Além disso, os bancos chineses são todos estatais e as operações de resgate dependem da decisão de poucas pessoas na cúpula do governo e do Partido Comunista. Bancos e mercados do país não têm amplos vasos comunicantes com os do resto do mundo. A crise pode ser isolada, até certo ponto, exceto para fundos estrangeiros que investem em ativos imobiliários.

Já os efeitos globais de uma desaceleração da China, em curso antes da quebra da incorporadora, são significativos. O setor imobiliário, direta e indiretamente, compõe ao menos 25% do PIB chinês. Ele consome de 5% a 20% da demanda global de aço, cobre, zinco, níquel e alumínio e o impacto de uma forte retração no segmento não é desprezível. Uma redução no PIB da China, que com os EUA são os motores do crescimento mundial, pode tirar alguns pontos percentuais da expansão global.

O governo chinês está diante de uma grande encrenca, para a qual não há saídas fáceis. Nem toda a dívida da Evergrande e dos incorporadores está nas mãos do sistema financeiro estatal - a que está, segundo relatos, é bem distribuída entre as instituições. A bolha de crédito, inclusive imobiliário, nutriu um alentado sistema financeiro paralelo, estimado em US$ 3 trilhões (mais que o PIB brasileiro, por comparação). Incorporadores e financiadores formaram trusts para transformar em veículos de investimento os papéis lastreados nos imóveis que prometeram construir, dando liquidez a uma corrida especulativa por terras e oferta de imóveis. Durante anos a Evergrande não teve caixa suficiente para os investimentos que fazia e “pedalava” os projetos que executava com o dinheiro do lançamento de títulos para novos projetos. Não estava sozinha nisso.

O problema se complica mais com a atuação dos governos provinciais e municipais, que obtinham receitas importantes da venda de terras para os incorporadores e participavam como chamarizes de veículos de investimentos para o povo, com diversificação em imóveis, infraestrutura etc. O governo central deixou a especulação correr solta por um bom tempo porque auxiliava suas metas de crescimento - e a dos governos locais, cujas lideranças almejam subir na hierarquia do partido - e supria os déficits habitacionais de uma população migrante para as cidades. Há um limite para esse processo, que parece ter chegado, com o acúmulo de imóveis vazios, mesmo com descontos expressivos para a aquisição - caso claro de super oferta.

A quebra da Evergrande significa que o limite deve ter chegado. Com alavancagem, a empresa adquiriu terra suficiente para abrigar a população de Portugal, ao custo de uma dívida maior do que a da Nova Zelândia (FT, novembro de 2020). Em agosto de 2020, o governo traçou as “três linhas vermelhas” para conter a febre especulativa no setor. Os passivos não poderiam ultrapassar 70% dos ativos, a relação entre caixa e dívida de curto prazo teria de ser maior que 1 e a de dívida líquida sobre capital, menor que 1. A Evergrande ultrapassou todas essas linhas.

Como sanear o setor e reduzir a alavancagem sem provocar queda vertiginosa em sua atividade é o primeiro desafio. O segundo é reconstruir a confiança dos compradores de imóveis e investidores, que se confundem. Os incorporadores criaram fundos cujos cotistas estão sendo vítimas do calote. A única atitude previsível é que Pequim fará o que puder, e pode quase tudo, para evitar uma crise sistêmica.

 

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