Valor Econômico
Um passeio por um monumento à corrupção
A confiança cega na tecnologia às vezes nos
coloca em perigo. Aproveitando a “semana do saco cheio” na escola dos filhos,
uma folga no trabalho e a queda nos índices de transmissão de covid-19,
partimos de Belo Horizonte para um passeio de uma semana entre Petrópolis e
Paraty, no Rio.
Depois de três dias de chuva na Cidade
Imperial, coloquei no Google Maps o destino final do Caminho Velho da Estrada
Real e simplesmente fui seguindo as indicações do percurso mais curto.
Após serpentearmos a Serra dos Órgãos pela
BR-040, o aplicativo determinou que pegássemos a BR-493 à direita na entrada de
Duque de Caxias. Por exatos 71,8 km, trafegamos por uma via duplicada, em ótimo
estado de conservação, plana, com poucas curvas - e praticamente deserta.
Se este escriba fosse um pouco mais zeloso, poderia ter se informado sobre as condições da estrada que iria percorrer. Basta iniciar a digitação no Google da expressão “Arco Metropolitano” que o site de buscas já completa automaticamente: “é perigoso”. Chegando a Paraty, todas as pessoas para as quais contamos o trajeto percorrido criticaram nossa imprudência.
Felizmente nossa travessia ocorreu sem
sobressaltos, mas a experiência de dirigir quilômetros e quilômetros no melhor
estilo “Brasil visto de baixo” por uma das rodovias menos seguras do país me
inspirou a conhecer melhor sua história.
O Arco Metropolitano do Rio de Janeiro foi
uma das principais obras de infraestrutura executada pelo ex-governador Sérgio
Cabral, com forte apoio do governo federal nas administrações Lula e Dilma. A
ideia de construir um grande anel viário para desafogar o trânsito na capital
fluminense, conectando as rodovias Rio-Santos (BR-101, ao sul), Dutra (BR-116),
Washington Luís (BR-040), Rio-Teresópolis (BR-116) e Rio-Vitória (BR-101, ao
norte), remonta à década de 1970, mas só começou a sair do papel no tempo das
vacas gordas do boom das commodities e da euforia com o pré-sal.
Incluído na primeira edição do Programa de
Aceleração do Crescimento (PAC) em 2007, o então chamado Arco Rodoviário previa
ligar, até o final de 2010, o porto de Itaguaí ao Complexo Petroquímico do Rio
(Comperj) em Itaboraí, construído pela Petrobrás. O valor orçado foi de R$ 756
milhões, suficiente para duplicar 48km de vias federais já existentes, além da
abertura de um trecho virgem de 74km.
Em 1º de julho de 2014, quando a “mãe do
PAC”, Dilma Rousseff, já no final do seu primeiro mandato, inaugurou a obra ao
lado do governador Luiz Fernando Pezão (Cabral havia renunciado pouco antes),
apenas o trecho entre Duque de Caxias e Itaguaí estava concluído - justamente o
trajeto que eu percorri na semana passada. Àquela altura, já tinham sido
consumidos quase R$ 2 bilhões de recursos públicos, em valores da época. Até
hoje a obra total não foi concluída.
Para além das planilhas orçamentárias que
pesquisei ao chegar em casa, vou me ater ao que vi no caminho. Não sou
engenheiro, mas não há no terreno nenhuma característica aparente que possa
justificar aditivos contratuais que tenham praticamente triplicado o custo
inicialmente previsto. A região entre a BR-040 e a Rio-Santos é uma imensa
planície, praticamente desabitada, que deve ter exigido muito menos trabalho de
terraplanagens, construção de viadutos e desapropriações do que normalmente as
estradas em áreas montanhosas e densamente povoadas exigem.
Também chama a atenção no Arco
Metropolitano a surreal sequência de postes de iluminação com painéis solares
no seu canteiro central. Segundo auditoria da Controladoria Geral do Estado do
Rio de Janeiro, foram contratadas 4.310 unidades alimentadas por energia
fotovoltaica. Considerando os 71,8km da rodovia, é um poste a cada 30 metros
nos dois lados da pista - contratados, em valores de 2014, ao preço unitário de
R$ 22,5 mil.
O que poderia demonstrar um cuidado
especial com o conforto dos motoristas noturnos ou a sustentabilidade ambiental
do empreendimento converteu-se em retrato do fracasso da segurança pública
fluminense: passados sete anos da inauguração do sistema de iluminação, é
difícil encontrar um exemplar com o jogo completo de painéis, fiação, lâmpadas
e baterias, quando não é o caso de o poste inteiro ter sido levado por
quadrilhas especializadas nesse tipo de crime.
Relatório produzido pela Federação das
Indústrias do Rio de Janeiro (Firjan) no mês de julho chama a atenção para o
fato de que o Arco Metropolitano registrou um aumento de 20% nas ocorrências de
roubo de cargas entre janeiro e maio deste ano, frente a uma redução de 12% no
Estado como um todo. Essa talvez seja uma explicação para o reduzido número de
caminhões que encontrei. A esperança da entidade é que a concessão do trecho à
iniciativa privada, prometida pelo governo federal para 2022, traga mais
segurança ao transporte na região.
A construção do Arco Metropolitano ficou a cargo
das construtoras Odebrecht, Andrade Gutierrez, Queiroz Galvão,
Christiani-Nielsen, OAS, Camargo Corrêa, Oriente e Delta. Denúncias de
superfaturamento e desvios de recursos públicos na sua construção estão
presentes em inúmeros depoimentos e acordos de delação premiada firmados nas
várias fases da Operação Lava Jato.
Apesar de a corrupção ainda figurar como
uma das maiores preocupações do brasileiro em todas as pesquisas de opinião
realizadas, o tema não aparece nos discursos e pronunciamentos de praticamente
todos os pré-candidatos à Presidência.
Por meio de mudanças na jurisprudência do
Supremo Tribunal Federal, de diversos projetos de lei aprovados pelo Congresso
Nacional e da inação de entidades de controle como Ministério Público,
Tribunais de Contas, Polícia Federal e Controladoria-Geral da União,
celebrou-se o sonhado “acordo nacional, com o Supremo, com tudo” de Romero Jucá
(será que ele voltará no ano que vem?).
Nos tribunais das redes sociais, qualquer
pessoa que critique o desmonte do sistema de combate à corrupção no Brasil é
logo condenado como lavajista, antidemocrático e fascista.
Pelo menos eu e minha família sobrevivemos
ao Arco Metropolitano do Rio de Janeiro, um exemplo de nosso fracasso.
*Bruno Carazza é mestre em
economia e doutor em direito, é autor de “Dinheiro, Eleições e Poder: as
engrenagens do sistema político brasileiro” (Companhia das Letras)”.
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