O Globo
Fervilha o mundo da coreografia
geopolítica. A cúpula de líderes do G-20, em Roma, engatada na Conferência das
Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (COP-26), em Glasgow, pretende imprimir
um sentido de urgência e emergência para os múltiplos problemas que afligem a
Terra. Dado o estado de desesperança geral, o noticiário sobre os dois
conclaves está sendo caudaloso. E é bom que assim seja, pois, para a humanidade
que encerra 2021 com fome, falta de ar e futuro incerto, seria importante poder
confiar na existência de um ou mais líderes com visão e maturidade. Difícil.
Todos parecem trazer na bagagem poucos remédios, só fardos.
Por sorte, sempre podemos nos abrigar em
vozes humanistas que ajudam a não esquecer o ontem e a pensar no amanhã. Assim,
foi um bálsamo captar, por mero acaso, uma longa entrevista do dramaturgo Ariel
Dorfman ao programa Hard Talk, da BBC de Londres. Dorfman, aos 79 anos,
disserta sobre sua condição de cidadão em trânsito entre duas culturas, duas
línguas, dois mundos. Nascido na Argentina de pais imigrantes judeus, crescera
nos Estados Unidos, mas foi fincar raízes no Chile do presidente socialista
Salvador Allende, de quem se tornou conselheiro cultural. Ali desabrochou sua
carreira de escritor. Com o golpe militar de 1973, viu seus livros serem
banidos e queimados e retornou como exilado aos EUA — justamente o país que
havia desempenhado papel crucial para a instalação da ditadura no Chile.
Em parte devido a essas circunstâncias pessoais, acabou se tornando um voyeur que olha o mundo com compaixão. Nestes tempos de nacionalismos em ascensão e muros em profusão, Dorfman explica não precisar pertencer a lugar algum, pois fez da literatura seu lar e da família, amigos e imaginação, suas raízes. “Já vivi momentos de terror absoluto e de alegrias intensas... mas não sou pregador de nada, apenas tenho o privilégio da imaginação. Como intelectual, tenho o dever de fazer perguntas difíceis”, diz o autor da monumental “A morte e a donzela”, peça teatral que leva ao palco apenas uma mulher sentada frente a frente de seu presumível torturador.
Como sarar o mundo? O que fazer com os
perpetradores? Com as vítimas? Como não ser cúmplice do sistema? Como se
desvencilhar das crueldades inerentes à vida? Dorfman acredita na Justiça
restaurativa. “É vital que a lei puna quem cometeu crimes horrendos, mas também
devemos olhar para dentro de nós para saber o que temos em comum —
perpetradores e vítimas. Não penso ter dentro de mim um mini-Pinochet ou um
mini-Hitler, não se trata disso. Mas também sei que pessoas comuns fazem coisas
terríveis”, explica.
Também tem sido um bálsamo buscar conforto
na voz universal de Edgar Morin. Meses atrás, pouco antes de completar 100
anos, esse grande pensador francês que soube compreender tantos mundos publicou
suas memórias — “Leçons d’un siècle de vie” (“Lições de um século de vida”,
ainda sem edição brasileira). Na obra, as “lições” do título não são
ensinamentos aos leitores, e sim as que ele mesmo extraiu do seu viver e do seu
errar.
Num dos capítulos mais marcantes, Morin
descreve sua dolorosa ruptura com o stalinismo. Comunista de carteirinha, o
filósofo narra quanto a supremacia americana do Pós-Segunda Guerra o impediu de
compreender que o sistema soviético foi pior — a democracia, pelo menos às
vezes, podia atenuar os abusos do capitalismo. A partir de 1947, quando a URSS
passou a condenar toda e qualquer literatura e cultura independente, Morin
conta ter se tornado “apenas consciente, e crítico”, fazendo oposição
“cultural”, mas sem questionar a natureza totalitária do regime. Tornou-se um
“mudo político” até 1949, quando a ignomínia de falsos processos contra
dissidentes soviéticos provocou nele a ruptura subjetiva. Ela se tornaria
objetiva com sua exclusão do Partido Comunista Francês. Ficou a dor maior — a
perda e ruptura de grandes amizades. “Perdi o cordão umbilical que me impedia
de nascer para mim mesmo. Eu tinha 30 anos”, escreveu.
Dessa travessia política e intelectual,
extraiu lições múltiplas. Para ele, ser de esquerda, ou apenas humanista,
passou a significar beber em quatro fontes: a fonte libertária, para o pleno
desenvolvimento dos indivíduos; a fonte socialista, para uma sociedade melhor;
a fonte comunista, para uma sociedade fraterna; a fonte ecológica, para
integrar melhor o humano na natureza e a natureza no humano.
Para os dirigentes reunidos em Roma e
Glasgow, reflexões desarmadas e vivências maturadas como as de Dorfman e Morin
podem parecer supérfluas. Engano. A humanidade sempre precisou dessas vozes
para compor o seu coral.
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