A omissão e o escapismo das lideranças e partidos que acabaram entregando o país à extrema-direita foram de tal monta que correram da raia tanto a facção de esquerda que ocupava o governo e que - exatamente por estar no governo - havia sido atingida pelos primeiros petardos da Lava-Jato, quanto as facções de centro e de direita que se uniram pelo impeachment de uma presidente já caída em desgraça pela rejeição popular e foram igualmente alcançadas, na sequência, pela perversidade de uma operação que degenerou, como se sabe, em toda sorte de arbitrariedades. Omitiu-se o grupo governante até 2016 ao fazer ouvidos moucos aos protestos de 2013 (que legitimamente e pacificamente cobravam eficácia e transparência do governo na prestação de serviços públicos) e ao tentar refratá-los pelo despiste para uma fictícia reforma política, chegando ao ponto de ameaçar a Carta de 1988 com uma insólita ideia de Constituinte. Já os grupos que apearam do poder aquele grupo governante também se omitiram ao negarem ao governo de transição que criaram o apoio e a solidariedade necessários para que se desse em clima de unidade a travessia até as urnas, hora em que os litigantes prestariam contas aos eleitores. As forças derrotadas na batalha do impeachment tentaram escapar pela narrativa do “golpe” e as vencedoras por um salve-se-quem-puder que fugia à responsabilidade política pela solução encontrada. Da combinação desses escapismos resultou a catástrofe atual.
A fábula da “nova política” ocupou, em
2018, o vácuo produzido por ambas as omissões. O governo de transição ficou
isolado e estigmatizado como governo da “velha política” e o embate eleitoral
entre as diversas candidaturas virou um concurso para ver quem era mais
“diferente” de tudo o que o sistema político representava. Brasília era tratada
como lugar contraposto ao Brasil não apenas pelo discurso do candidato miliciano
que pregava uma liberdade do Brasil profundo para matar, desmatar e
desrespeitar a lei de diversas formas – uma liberdade individual violenta,
negada por instituições sediadas na capital. Essa mesma capital também era assim
vista por vozes arvoradas em representantes dos brasileiros “de bem”, enojados
pela corrupção nos corredores do poder sem muitas vezes prestarem atenção em
conexões sociais dessa corrupção. E não era menor o desprezo por “Brasília”, demonstrado
por uma retórica de esquerda que opunha o seu Brasil ao “deles”.
Bolsonaro brotou nesse terreno
politicamente incivil e agreste. Essa lição da política recente já poderia
bastar para ativar as antenas dos partidos e forças políticas comprometidas com
a democracia para que 2022 não repita 2018. Muitos têm alertado que esse risco
reside no projeto de reeleição de Bolsonaro e no discurso nostálgico da pré-campanha
de Lula. Concordo até certo ponto. Esse duelo extremado (e não uma identidade
“extremista” supostamente comum a dois políticos tão diferentes, tratados
indevidamente como se fossem farinhas do mesmo saco) comporta, de fato, sério
risco de agravamento da já prolongada crise de horizontes em que vivemos. Mas
acaba de se juntar um terceiro fator de risco que é a tentação de voltar a ver
a demonização e a interdição da política como saída para a crise. Esse risco
tem nome e sobrenome e se prepara para entrar na disputa eleitoral. Falta uma
semana e meia para a prevista assunção de uma candidatura presidencial pelo
ex-juiz Sergio Moro e o clima aclamativo em importantes segmentos da mídia e da
sociedade civil já se reinstala. Logo se vê que muita gente não aprendeu com as
lições recentes sobre o poder desagregador e destrutivo da antipolítica. Pior,
o ovo da serpente está sendo chocado, de modo parasitário, no terreno da
chamada terceira via que, por definição, é o mais antagônico ao extremismo desse
projeto de candidatura.
Se a dramaticidade da experiência atual não
é bastante para produzir vacinas adequadas contra o canto de sereia do
justicialismo salvacionista e antipolítico preste-se atenção na história do
país para ver que ele andou melhor quando a política do entendimento político prevaleceu,
sem prejuízo do duro conflito entre governo e oposição. Foi assim nos sempre
lembrados anos JK, na transição democrática, cujo legado é a atual
Constituição, na adoção do Plano Real que tornou factível o pacto
democrático e na Carta aos brasileiros, que o renovou. Todos esses
processos foram dirigidos pela elite política civil de cada tempo, ou por
partes significativas dela. Inversamente, desastres estiveram no fim da linha quando
a elite política foi alijada ou recusou essa gramática. Foi assim em 1964, mais
ainda em 1968 e, após a redemocratização do país, ocorreu sob Collor, Dilma
Rousseff e agora, sob Bolsonaro, o desastre maior sob o regime da Carta de 88, redundante
em crime e tragédia.
Juscelino fundou Brasília para integrar o
Brasil, não para se apartar dele. Essa é a vocação das experiências
institucionais democráticas que a então nova capital passou a sediar. O golpe
de 64, apenas quatro anos após essa fundação e o regime autoritário que dele
resultou adiaram o teste necessário para se verificar a concretização dessa
vocação. Ulisses Guimarães e Tancredo Neves lideraram a reabertura do caminho
desbravado por JK. De Tancredo veio, sem meias palavras, o prognóstico que
tornou a reabertura crível no momento crucial do processo, quando a incerteza
parecia atingir seu máximo grau. Quando confrontado com a fama de Paulo Maluf,
seu adversário no Colégio Eleitoral, de ser um perito em aliciar corpos
eleitorais limitados como aquele, Tancredo respondeu que “Até aqui ele só
enfrentou amadores. Agora enfrentará um profissional”. Provou, com sua
vitória no quintal do inimigo, não ter sido bravata a sua declaração
tranquilizadora. E se o destino não lhe deu a chance de colher no governo o que
plantou fora dele, é justo reconhecer que o governo Sarney, de tantas mazelas
econômicas e administrativas, não deixou de honrar a promessa política de
Tancredo de conduzir a fase final da transição ao porto da plena democracia,
cujo auge se deu na Constituinte que, sob a batuta de Ulisses, concretizou o
momento de maior aproximação entre Brasília e o restante do país.
Assim como Sarney, outros vice-presidentes
políticos, como Itamar Franco e Michel Temer, souberam, mesmo sem ter as
bençãos do voto popular para o cargo presidencial, entender-se, de modo
prudente e autocontido, com a elite política de seus tempos para levar o país a
eleições em condições de estabilidade maiores do que as que poderiam ser
propiciadas pelos dois titulares a quem constitucionalmente sucederam. Foi,
além de no voto, na política profissional que Fernando Henrique Cardoso, o
presidente eleito pelo Plano Real, também se amparou para tornar factível a sua
agenda de reformas. E não foi outra a gramática de Luiz Ignácio Lula da Silva,
no pico mais virtuoso de seus governos.
Todos eles, enquanto viveram e atuaram em Brasília, fizeram dela lugar
capital do Brasil.
Pouco importa, neste exato momento, apurarmos
em que momento pretérito, ao longo desses 36 anos decorridos desde Tancredo, os
políticos brasileiros perderam a autoconfiança e o senso de veracidade capaz de
fazê-los salientar, em vez de dissimular, a missão pública que os define. O que mais importa é que essa capacidade
precisa ser recuperada sem mais demora porque o próximo desastre está a se
desenhar. Sim, porque é aos políticos e seus partidos - e não ao povo, muito
menos a qualquer charlatão que se apresente em seu nome com aspiração a
soberano - que cabe a missão de governar uma república democrática, sob a
vigilância da sociedade e o crivo do eleitorado. Quando essa verdade iluminadora da realidade
se afasta dos microfones e telas que veiculam as declarações dos representantes,
a democracia perde terreno para a demagogia que proclama o amadorismo como
virtude.
O país precisa de uma frente política
contra os amadorismos políticos de qualquer espécie. Aquele que se acantonou em
Curitiba na década passada não é menos destrutivo de instituições do que a
corrupção em nome de cujo combate pretende justificar sua pretensão guardiânica
e do que o filo-fascismo a que se associou, em 2018, vislumbrando um atalho.
*Cientista político e professor da UFBa
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