O Globo
‘Quem
controla o passado controla o futuro’, citou Winston, obediente, como queria
O’Brien, antes de completar: “Quem controla o presente controla o passado”. Xi
Jinping deve ter lido Orwell, pois o lema do Partido Interno de 1984 inspirou o
6º Pleno do Comitê Central do Partido Comunista Chinês (PCC). O PCC, no seu
centésimo aniversário, ganhou uma história oficial com força de lei. Torna-se,
por meio dela, uma entidade perfeita.
Xi não deixa a China e não recebe nenhum
líder estrangeiro desde janeiro de 2020,quando a pandemia açoitava Wuhan. O
líder chinês não compareceu ao G20 ou à COP26. Sua prioridade absoluta era a
missão historiográfica agora concluída.
Sucesso: ele inscreveu na pedra duas “verdades” invioláveis. De um lado, foi nomeado Líder Essencial, numa galeria composta somente de mais dois personagens: Mao Tsé-Tung, o pai fundador da China comunista, e seu rival e sucessor, Deng Xiaoping, que deflagrou a abertura econômica no anoitecer da década de 1970. De outro, apagou a crítica a Mao escrita em tinta vermelha na História oficial prévia, produzida por Deng.
O segundo Líder Essencial moveu
radicalmente o timão da nau chinesa, afastando-a das águas turbulentas do
maoismo. Deng tinha sido das mais notórias vítimas da Revolução Cultural
(1966-1976), perdendo seus cargos na direção do PCC e experimentando o trabalho
manual numa fábrica rural de tratores, entre 1969 e 1973. No poder, após a
morte de Mao, orientou a “Resolução sobre certas questões na História de nosso
partido” (1981). Sua versão da História estatal definia o pai fundador como
“Líder Ilustre”, mas abria um parêntese para condenar a Revolução Cultural.
Deng sabia que pisava em solo minado.
“Quando escrevemos sobre seus erros, não devemos exagerar, para não
desacreditar o Presidente Mao Tsé-Tung, o que implicaria desacreditar nosso
Partido e Estado. Seus méritos são predominantes, e seus erros secundários.” A
identificação tripla — entre Líder, Partido e Estado — funciona como base
lógica do totalitarismo. Convinha, portanto, não “exagerar”.
Xi, terceiro Líder Essencial, também sofreu
na Revolução Cultural. Seu pai, alto dirigente do PCC, foi preso, sua irmã
suicidou-se, e ele teve de trabalhar no campo. Contudo, ao contrário de Deng,
ele comanda um país que enxerga os horrores daquela época quase como um
registro frio no livro do passado. Meio século depois, já pode suprimir o
parêntese maldito introduzido no manual da História oficial.
Por que suprimi-lo? Na URSS, o sucessor
Nikita Kruschev só se consolidou no poder em 1956, três anos após a morte de
Stálin, quando denunciou seus crimes no célebre 20º Congresso do Partido
Comunista. Xi acredita que aquele gesto foi o pecado original: a profanação
teria liberado forças incontroláveis, resultando muito depois nas reformas de
Gorbachev e, finalmente, na implosão do Estado soviético. A China precisa
escapar da armadilha, reinstalando uma História sem mácula.
“Quem controla o presente controla o
passado.” Xi deflagrou uma campanha contra o “niilismo histórico” — ou seja, o
reconhecimento de que a Revolução Cultural foi uma catástrofe nacional. Em
março passado, introduziu-se em lei o crime de zombar de “heróis nacionais” —
isto é, Mao Tsé-Tung. A transgressão é punível com três anos de cárcere. A
História reinventada do Partido infalível será ensinada nos livros escolares e
propagada pela mídia autorizada.
Há 40 anos, Deng classificou como
“inadmissível” ocultar os “equívocos” do passado, o que provocaria “equívocos
piores” no futuro. Implícita nessa avaliação está a noção de que existe um
passado objetivo, identificável por todos. Xi discorda. Para ele, o passado é
uma construção estatal: o que o Partido quer que seja.
Segundo inúmeros analistas, a história orwelliana escrita no 6º Pleno não sobreviverá ao escrutínio da “era da informação”. Temo que estejam errados. Mao impunha sua verdade por meio da violência dos Guardas Vermelhos. Xi confia, antes de tudo, na internet e nas redes sociais para cimentar sua pós-verdade. 2 + 2 = 5, como dizia O’Brien.
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