O Globo
Umas coisas estranhas estão acontecendo no
Brasil de hoje, e tenho até certa dificuldade de descrevê-las. Em muitos
artigos, renascem as citações de alguns grandes intérpretes do país, Sérgio
Buarque de Holanda, Raimundo Faoro, Victor Nunes Leal.
São quase sempre destinadas a enfatizar os
velhos defeitos do Brasil que, apesar dos tempos, reaparecem com força: o
conluio das elites políticas para transformar o Tesouro nacional em patrimônio
de alguns, a associação com as elites regionais para preservar seu poder.
Parece que o Brasil ficou velho de repente
e que não se deu conta. A jovem democracia se olha no espelho como Dorian Gray,
personagem de Oscar Wilde, que vê no retrato as deformações da idade, de seu
súbito envelhecimento. É tão perturbador que, às vezes, me pergunto se é apenas
o velho ou o eterno Brasil que se revela diante de nós.
O fantástico exemplo do orçamento secreto é um sintoma de como viajamos para o passado. Foi denunciado há alguns meses, mas só agora as instituições brasileiras se dão conta de que quase R$ 20 bilhões de dinheiro público são gastos sem a necessária transparência. Como foi possível um mecanismo tão perverso durar tanto tempo?
A explicação mais direta é a que aponta
para o enlace de Bolsonaro com o Centrão. É preciso lubrificar com muito
dinheiro as engrenagens de apoio ao governo e, sobretudo, a disposição de se
sentar em cima de tantos pedidos de impeachment.
Mas é curioso como Bolsonaro se declara
conservador, mas, na prática, revive apenas os grandes erros do passado,
conserva o que deveria ser ultrapassado. Se não é conservador, é apenas um
reacionário, mas ainda assim a descrição ficaria incompleta.
Quando assumiu o governo, Bolsonaro disse
uma frase enigmática: há muito o que destruir. Sua grande investida foi contra
as estruturas de fiscalização e as próprias leis do meio ambiente. Desorganizou
um trabalho de anos, restabeleceu um ritmo de desmatamento e queimadas que
parecia sepultado.
Ao deparar com a pandemia, Bolsonaro
iniciou a demolição do Ministério da Saúde, a ponto de entregá-lo a um general
que não distingue um vírus de um rinoceronte e a curandeiros que propagam a
cloroquina. O resultado se expressa no grande número de mortos pela Covid-19.
Na Cultura, Bolsonaro fez deliberadamente
uma política de terra arrasada, fiel à frase do oficial franquista na Guerra
Civil Espanhola: quando ouço a palavra cultura, tenho vontade de sacar minha
arma.
Com a demissão em massa dos funcionários do
Inep, tornou-se evidente que o processo destrutivo também avançou na educação,
o que já era visível pelo nível dos ministros que escolhe para a pasta.
O que acontece com um país que regride à
falta de transparência nos gastos públicos, devorados por vorazes quadrilhas
parlamentares? O que acontece com um país, neste momento da História
planetária, que estimula a destruição de seus recursos naturais e,
consequentemente, aumenta o perigo de extinção da espécie humana?
Bolsonaro ainda tem apoio de muitos, não
tantos como no passado. Mas ainda tem apoio, mesmo entre jornalistas que
racionalizam suas loucuras, não tanto por admiração, mas por uma espécie de
teimosia ideológica.
Nem todos enxergam a mesma paisagem em
ruínas. Os militares, tão ciosos da segurança nacional, veem com complacência
bonachona a dilaceração do tecido institucional.
Os generais no governo associavam o Centrão
a um bando de salteadores. Agora são cúmplices silenciosos e, possivelmente,
sorridentes do grande assalto aos cofres públicos.
Por tudo isso, o grande número de pessoas
que podem salvar o Brasil dessa destrutiva regressão precisa compreender a
gravidade do sentimento de perder um país, relevar disputas e rivalidades
eleitorais e se dar conta do buraco em que nos metemos. É um perigo compreender
tarde demais a dimensão da nossa crise.
Nenhum comentário:
Postar um comentário