O Estado de S. Paulo
A PEC do Calote pode ser mais um
instrumento a serviço da política destruidora conduzida pelo presidente Jair
Bolsonaro
Vinte milhões de pobres serão abandonados pelo poder federal, sem acesso ao novo Bolsa Família e sem ajuda emergencial, admitiu o senador Fernando Bezerra, líder do governo e relator da PEC do Calote, oficialmente conhecida como PEC dos Precatórios. O governo, segundo ele, acredita na retomada econômica, sobretudo no setor de serviços, grande gerador de emprego informal. No Ministério da Economia, acrescentou, ainda se espera um crescimento na faixa de 1,5% a 2% no próximo ano. Faltou explicar como um desempenho tão miserável poderá gerar empregos para acomodar a multidão em busca de ocupação e de algum sustento para a família. Salve-se quem puder, danemse os outros e parem de incomodar o governo, poderia ter concluído o senador, se quisesse usar a linguagem do presidente Jair Bolsonaro. Mas preservou a compostura e o tom formal.
A PEC do Calote, desenhada também para
romper o teto de gastos, garantirá dinheiro, segundo o presidente e o ministro
da Economia para o Auxílio Brasil, versão bolsonariana do Bolsa Família. Mas a
ampliação do universo – de 14,6 milhões para 17 milhões de famílias – apenas
eliminará, se tanto, a fila de pretendentes à ajuda. Já havia, no começo do ano
passado, cerca de 1,2 milhão de famílias à espera de inscrição. O número
cresceu, como se poderia prever, por efeito do empobrecimento da população. Na
passagem de 2020 para 2021, cerca de 19 milhões de pessoas afundaram na extrema
pobreza, com a redução e a eliminação prematuras do auxílio emergencial.
A assistência aos pobres continua
indispensável. Mas a criação do Auxílio Brasil, em substituição ao programa
Bolsa Família, além de ser uma evidente jogada eleitoral, será complementada,
segundo se anunciou, com o abandono do auxílio mais amplo aos atingidos pela
nova crise, ocasionada pela pandemia. Além disso, ninguém provou ser necessária
a perfuração do teto fiscal para o pagamento da nova ajuda, se o aumento do
valor unitário for sustentável. A prioridade do presidente, como indicam as
suas decisões, é obter resultados em 2022, quando tentará a reeleição. A busca
da sustentabilidade envolveria condições para manter os pagamentos durante
vários anos, talvez por um prazo inicialmente indeterminado. Mas o jogo
presidencial é incompatível com esses cuidados, e os efeitos nocivos, desta
vez, poderão ir além dos estragos fiscais.
Ao impor mais um dano ao teto de gastos,
sem motivo tecnicamente defensável, a PEC do Calote funcionará, se aprovada,
como novo instrumento demolidor a serviço do presidente Bolsonaro. Mas será um
instrumento diferenciado, capaz de produzir múltiplos estragos na economia e
nas instituições nacionais.
Posta em vigor, a PEC do Calote será uma
bomba contra a República. Forçará o credor do Tesouro a continuar esperando um
pagamento já atrasado. Atribuirá ao poder central, em nome da Constituição, o
privilégio de driblar suas dívidas. Autorizará o presidente da República,
associado ao Legislativo, a mudar uma decisão final do Judiciário – neste caso,
a ordem de liquidar um compromisso reconhecido. Arrebentará o teto de gastos,
um dos pilares das contas públicas, sem a justificativa de uma calamidade ou de
algo equivalente.
Será um avanço na marcha destruidora do
presidente Jair Bolsonaro. Devastação ambiental, intervenções na Petrobras e em
bancos estatais, diplomacia desastrosa, conflitos com o Judiciário, ameaças
golpistas, erros mortíferos em relação à pandemia, ataques à educação e à
cultura, desprezo à ciência e desorganização do governo são marcos dessa trajetória,
assim como o fracasso econômico.
O desmonte da economia é um dos efeitos
mais visíveis de quase três anos de ações demolidoras. O País terá crescimento
econômico de apenas 1% em 2022, segundo a mediana das projeções incluídas na
pesquisa Focus e publicadas na última segunda-feira. Grandes bancos e
consultorias importantes já anunciaram estimativas próximas de zero. Além
disso, a inflação estimada para 2021 já se avizinha de 10% e a do próximo ano
está muito perto de 5%, de acordo com levantamento da Agência Estado.
Essa devastação tem aspectos harmônicos.
Inflação maior combina com juros mais altos. A taxa básica estimada no mercado
para o fim do próximo ano supera 11%, segundo avaliações dos últimos dias.
Juros maiores atrapalharão empresas e consumidores e afetarão o governo. O
Tesouro terá custos maiores e o endividamento público se tornará mais pesado.
O desemprego, superior a 13% da força de
trabalho no trimestre móvel encerrado em agosto, é mais que o dobro da média
dos 38 países da Organização para Cooperação e o Desenvolvimento Econômico
(OCDE). Essa média caiu de 6% em agosto para 5,8% em setembro. Segundo
economistas da Fundação Getulio Vargas (FGV), a desocupação no Brasil poderá
continuar elevada até 2026. Se Bolsonaro deixar a Presidência depois da próxima
eleição, o País poderá convalescer, mas o novo presidente receberá um legado
assustador. Até lá dificilmente o desmonte será interrompido, enquanto houver
algo para ser desmontado.
*Jornalista
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