O Estado de S. Paulo
Patriotas são aqueles dispostos a colocar
seus tijolos na nunca terminada construção de uma casa comum que seja de todos
Bolsonaro se crê um patriota. O engano é
evidente. O atual presidente não revela traço algum de quem ama o seu país. O
desprezo pela vida dos brasileiros, demonstrado na pandemia, e o descaso com o
meio ambiente, em geral, e a Amazônia, em particular, falam por si. Bolsonaro
não conhece nem tem apreço pela cultura brasileira, na sua imensa riqueza e
diversidade. Se dependesse dele, a natureza e a cultura, que dão corpo e alma a
este país, não resistiriam. E nossa história ficaria aprisionada nos chavões de
um autoritarismo primitivo.
E, apesar de tudo isso, o bolsonarismo
tenta se apoderar de símbolos nacionais, como o hino, a bandeira e a camisa da
seleção brasileira. Patriotismo excludente, movido a ódio, exterminador do
futuro.
Nações são comunidades imaginadas, na
definição de Benedict Anderson, autor de um livro clássico sobre as origens dos
Estados nacionais e a difusão do nacionalismo. Existem não como um dado da
geografia física, mas como construções políticas e culturais, pelo fazer, o
falar, o atuar e o escrever constantes de muitos que compartem uma língua e
vínculos concretos e simbólicos com um território delimitado e um passado em
comum, vivendo sob as mesmas leis. Para subsistirem, as nações precisam ser
periodicamente reimaginadas para projetar um destino em comum, melhor para
todos.
Os mitos da nacionalidade brasileira – a democracia racial, o gigante pela própria natureza, o país do futuro, etc. – estão em mau estado. Não resistiram ao embate com a realidade de um país que, em 200 anos, resolveu bem suas questões de fronteira, ocupou seu território, se urbanizou e industrializou, tornou-se uma grande economia, mas não conseguiu entregar à grande massa de sua população condições aceitáveis de vida e um terreno firme e plano para o exercício da cidadania.
Quando terminou o regime autoritário
(1964-1985), o Brasil figurava entre os países que mais haviam crescido ao
longo do século prestes a terminar. Altas taxas de crescimento, porém, não
produziram indicadores sociais compatíveis. Ao contrário, no fim da ditadura,
25% dos brasileiros ainda eram analfabetos, muitas crianças continuavam fora da
escola (cerca de 30% nas regiões menos desenvolvidas), o ensino médio era ainda
uma quimera para a grande maioria dos jovens e a mortalidade infantil se situava
na casa dos 40 por mil nascimentos.
A democracia não resolveu todos esses
problemas. Mas os colocou no centro do debate público e da agenda nacional e
desobstruiu os canais para que a sociedade, nas suas múltiplas e contraditórias
vontades e interesses, passasse a demandar soluções, sem bater às portas dos
quartéis. A Constituição de 1988 assegurou liberdades e garantias individuais,
estendeu o rol dos direitos fundamentais, incorporando a saúde pública e o
ensino básico para todos, deu proteção constitucional ao meio ambiente e
visibilidade e proteção a minorias antes marginalizadas do espaço público e
criou mecanismos para a expressão e defesa de direitos difusos. Embora
insuficientes, os avanços saltam aos olhos de quem tem olhos para ver.
Devemos valorizar e compreender essa
experiência em toda a sua importância. Para isso, é preciso conhecer e discutir
criticamente o nosso passado. Não para nos imobilizar na purgação dos nossos
muitos pecados, mas porque saber de onde viemos é essencial para definir aonde
queremos chegar.
Constituição não é Bíblia. Ela já sofreu
mais de 100 emendas e deverá sofrer outras para reduzir o seu detalhismo e a
sua incidência excessiva em questões que devem ser resolvidas na e pela
política, no âmbito da legislação complementar. A nossa Constituição, porém,
nos oferece o que outras, louvadas por serem mais enxutas, não entregam. Ela
projeta a utopia viável de um país mais igualitário e inclusivo, democrático no
funcionamento das suas instituições políticas e na oferta de bens públicos,
conhecedor e zeloso da sua biodiversidade, orgulhoso da sua diversidade
cultural e racial. E nos dá a gramática para processar os conflitos inerentes à
busca, na democracia, pela concretização progressiva dessas aspirações.
Podemos divergir sobre a velocidade e os
meios para avançar, ainda mais, no caminho que a Constituição aponta, desde as
questões mais abrangentes sobre o papel do Estado, do mercado e da sociedade
até suas expressões mais concretas em torno da tributação e do gasto público,
passando por todas as áreas das políticas públicas, inclusive a política
externa.
O importante é convergirmos em relação aos
valores fundamentais da Constituição e as regras democráticas que ela
estabelece para resolvermos as nossas diferenças.
A Nação não tem dono. Patriotas são aqueles
e aquelas que estão dispostos(as) a colocar seus tijolos – de cores e formatos
diferentes – na construção nunca terminada de uma casa comum que seja de
todos(as) que aqui vivem e viverão um dia, gente que não conheceremos, mas que
terão o mesmo amor por esta “comunidade imaginada”, mas bem real, chamada
Brasil.
*Diretor-Geral da Fundação FHC, é membro do Gacint-USP
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