Correio Braziliense / Estado de Minas
Além do fisiologismo, a
emenda constitucional dos precatórios legitima ilegalidades flagrantes e gera
grande insegurança jurídica para cidadãos, empresas e investidores
A eleição do deputado Arthur Lira (PP-AL) à
presidência da Câmara representou o alinhamento da Casa com o presidente Jair
Bolsonaro e, também, a recidiva de velhas práticas políticas bastante
conhecidas e estudadas. Três clássicos da nossa literatura política que nos dão
a dimensão do atraso: Raízes do Brasil (Editora Globo), de Sérgio Buarque de
Holanda; Coronelismo, enxada e voto (Companhia das Letras), de Vitor Nunes
Leal; Os Donos do Poder (Editora Globo), de Raymundo Faoro.
Buarque nos mostrou, em 1936, o peso do
colonialismo ibérico, da escravidão e do compadrio na formação de uma elite
política patrimonialista, personalista e despótica; em 1948, Nunes Leal
desnudou as relações de poder na base do “é dando que se recebe”, da
Presidência aos estados, nos quais o coronelismo garantia existência de
“currais eleitorais”, através de favores e da intimidação nos grotões do país;
já em 1958, além das raízes lusitanas do nosso patrimonialismo, Faoro também
demonstrou como o poder público é utilizado em benefício privado.
Há um choque permanente no Congresso entre o moderno, protagonizado pelos setores liberais e social-democratas, e o atraso, representado pelo chamado “baixo clero”, o conjunto de parlamentares fisiológicos e patrimonialistas, do qual o presidente Jair Bolsonaro é egresso. Na Constituinte, o “Centrão” representou a aliança de lideranças conservadoras e reacionárias com esse “baixo clero”. Destrinchar esse jogo nas votações nem sempre é fácil, porque há conservadores que querem a modernização do país, ainda que por uma via elitista, e setores transformistas de esquerda, com retórica nacional-libertadora e estatizante.
Antes, o chamado Centrão dominara a Casa no
governo Itamar Franco, com o deputado Inocêncio de Oliveira (PFL-PE), de 1993 a
1994, que não cometeu nenhum grande desatino; e no governo Lula, com Severino
Cavalcanti (PFL-PE), em 2005, em razão de uma disputa interna na base
governista. Cavalcanti renunciou ao cargo, em setembro do ano seguinte, após
denúncia de que exigira propina de R$ 10 mil mensais de um concessionário de
cantina na Câmara.
Agora, a ascensão de Lira foi possível
devido à mudança na composição da Câmara, na onda da eleição do presidente Jair
Bolsonaro, e aos desgastes do deputado Rodrigo Maia (DEM) no comando da Câmara.
Expoente da velha oligarquia de Alagoas, Lira é um dos caciques do PP, ao lado
do ministro da Casa Civil, Ciro Nogueira (PI), e do líder do governo na Câmara,
Ricardo Barros (PR). Recebeu apoio maciço do “baixo clero” e contou com o jogo
bruto do Palácio do Planalto, temeroso de que o deputado Baleia Rossi (MDB-SP),
apoiado por Maia, viesse a abrir um processo de impeachment.
Julgamento
A moeda de troca de Lira são os recursos do
Orçamento da União, proveniente das emendas parlamentares, e os cargos do
governo federal. Entretanto, parte de sua base de apoio é formada por deputados
dos partidos de oposição, seduzidos na surdina por verbas e cargos. Lira mantém
na gaveta mais de uma centena de pedidos de impeachment e aprovou uma Lei
Orçamentária na qual o relator controla, sozinho, quase R$ 20 bilhões em
emendas secretas. Cobrando lealdades, Lira conseguiu aprovar, por uma margem de
quatro votos, a chamada PEC dos Precatórios, que dá um calote no pagamento das
dívidas judiciais e aumenta o teto de gastos do governo em quase R$ 100
bilhões, a pretexto de conceder o Auxílio Brasil.
Na sexta-feira, a ministra Rosa Weber, do
Supremo Tribunal Federal (STF), determinou a suspensão integral e imediata da
execução dessas “emendas do relator”, até que seja julgado o mérito das ações
que questionam a prática no Congresso Nacional. Estima-se que esses recursos
correspondam a quase R$ 20 bilhões. A relatora determinou, ainda, que sejam
tornados públicos os documentos que embasaram a distribuição desses recursos
(identificados apenas pela rubrica RP 9). Além do fisiologismo, saltam aos
olhos as inconstitucionalidades na votação da emenda constitucional (deputados
votaram do exterior, inclusive). Decisões que buscam legitimar ilegalidades
flagrantes geram grande insegurança jurídica e institucional para cidadãos,
empresas e investidores.
A liminar foi concedida em ação impetrada
pelo PSOL, pelo PSB e pelo CIdadania. Também estabelece que todas as demandas
de parlamentares voltadas à distribuição de emendas do relator-geral do
orçamento, independentemente da modalidade de aplicação, sejam registradas em
plataforma eletrônica centralizada, mantida pelo órgão central do Sistema de Planejamento
e Orçamento Federal, em conformidade com os princípios constitucionais da
publicidade e da transparência. Terça-feira e quarta, o plenário do Supremo
julgará a questão.
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