Valor Econômico / Eu & Fim de Semana
O fundamento de uma terceira via é a do
primado da vida e da ética correspondente, que nos livre do autoritarismo e da
miséria e nos devolva o sentido da esperança
Nas cogitações de uma terceira via
política, para que o Brasil saia dos limites de um movimento pendular entre
lulismo e bolsonarismo, falta tudo. É busca motivada por uma premissa
antipolítica: ao mesmo tempo cassar Lula antes de eventualmente eleito, de um
lado, e depor Bolsonaro, porque muito aquém do que se espera de um governante.
Essa terceira via é a da procura de outro, no formato do mesmo.
As pesquisas de opinião eleitoral nos
mostram que o eleitorado ainda é prisioneiro do movimento pendular do nosso
processo político. Abandonou o populismo de um Lula desgastado, pelos processos
nem sempre claros da Operação Lava-Jato, em favor da nova cara do terrorismo
político, o da manipulação da opinião e das fake news.
Nesse cenário, fica muito difícil
identificar e localizar os novos personagens do processo político brasileiro
que personifiquem o mandato democrático de encontrar uma saída para a ameaça do
novo poder pessoal às instituições. E possibilite a superação da mediocridade
que está levando o país ao caos e à ruína.
Terceira via pressupõe identidades sociais, de classe, de grupo ou de outros agentes sociais de convergência de interesses e de visão de mundo em favor do país e em favor do bem comum. Tudo isso foi aqui fragilizado em decorrência de transformações sociais do último meio século.
O Partido dos Trabalhadores emergiu quando
a classe operária já havia entrado em declínio. Não por acaso seus intelectuais
orgânicos o definiram como “dos trabalhadores” e não apenas como Partido
Operário, no intento de ampliar as bases sociais do partido.
Já no mundo rural, a categoria
“trabalhadores” era abstrata. Não unificava. Porque trabalhador quer ali dizer
outra coisa, a pessoa trabalhadeira, cumpridora das obrigações, que não é
preguiçosa, mas não necessariamente identificada com a ideologia operária do
trabalho em conflito com o capital.
Além disso, o Partido dos Trabalhadores
procurou atrair e representar, e fez bem, categorias envolvidas em conflitos
por direitos, como o direito à terra de trabalho. Portanto, em situação social
transitória, protagonistas de demandas sociais não permanentes. Caso de todos
aqueles cujo vínculo com a terra é precário, vínculo que não representava
conflito próprio da sociedade de classes. Categorias sociais cujos interesses e
demandas ainda pedem a compreensão científica de sua peculiar inserção no mundo
capitalista.
A clientela potencial da reforma agrária em
todas as partes está em situação de mudança social. Realizada, a reforma a
extingue. Ao transformá-la em proprietária de terra, integra-a numa classe
social historicamente conservadora. Para ela, o discurso operário diz respeito
a uma ideia alheia. Quando muito, sobra-lhe a mística da agricultura familiar e
dos valores sociais da relação entre o homem e a natureza.
O mesmo se dá com o empresariado. Os
empresários da Fiesp e os empresários do agronegócio não têm como ver o mundo a
partir da mesma perspectiva nem dos mesmos interesses. O agronegócio tem no seu
passivo a anomalia da questão agrária e da questão ambiental, fundamento de
questões sociais como a da reforma agrária e a do reconhecimento do direito de
territorialidade das populações indígenas.
As classes sociais, no Brasil, são
fragmentárias e estão divididas quanto aos próprios interesses. O que dificulta
a formulação de uma terceira via. A qual não depende de pessoas mas da aliança
política e da coalização democrática que expressem interesses sociais que
desbloqueiem nossa possibilidade histórica de desenvolvimento com democracia.
Lula ainda tem condições de personificar
essa grande causa pós-petista e pós-autoritarismo bolsonarista. Já não se pode
dizer o mesmo em relação a Bolsonaro: seu governo, equivocado em todos os
âmbitos, destruiu a confiança que nele tinha boa parte do eleitorado que o pôs
na Presidência.
Nesse cenário, sem sujeitos sociais de
referência, a terceira via é uma quimera. Na nova era possível do
pós-bolsonarismo, o protagonismo será da aliança que construir uma agenda de
demandas sociais e de reformas sociais para consertar os efeitos destrutivos da
barbárie que se apossou do país. Nesse sentido, sem as esquerdas não haverá
terceira via. Se renovadas e atualizadas, elas poderão ser portadoras da
consciência social e política que reconheça os problemas que pedem mudança.
A direita, em todas as partes, é ditadura e
repressão. Acha que os problemas sociais podem ser resolvidos ou no porrete ou
na indiferença em relação à miséria e à morte. O fundamento de uma terceira via
é a do primado da vida e da ética correspondente, que nos livre do
autoritarismo e da miséria e nos devolva o sentido da esperança.
*José de Souza Martins é sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Professor da Cátedra Simón Bolivar, da Universidade de Cambridge, e fellow de Trinity Hall (1993-94). Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, é autor de “Sociologia do desconhecimento - ensaios sobre a incerteza do instante” (Editora Unesp).
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