sexta-feira, 3 de dezembro de 2021

José de Souza Martins* - A difícil terceira via

Valor Econômico / Eu & Fim de Semana

O fundamento de uma terceira via é a do primado da vida e da ética correspondente, que nos livre do autoritarismo e da miséria e nos devolva o sentido da esperança

Nas cogitações de uma terceira via política, para que o Brasil saia dos limites de um movimento pendular entre lulismo e bolsonarismo, falta tudo. É busca motivada por uma premissa antipolítica: ao mesmo tempo cassar Lula antes de eventualmente eleito, de um lado, e depor Bolsonaro, porque muito aquém do que se espera de um governante. Essa terceira via é a da procura de outro, no formato do mesmo.

As pesquisas de opinião eleitoral nos mostram que o eleitorado ainda é prisioneiro do movimento pendular do nosso processo político. Abandonou o populismo de um Lula desgastado, pelos processos nem sempre claros da Operação Lava-Jato, em favor da nova cara do terrorismo político, o da manipulação da opinião e das fake news.

Nesse cenário, fica muito difícil identificar e localizar os novos personagens do processo político brasileiro que personifiquem o mandato democrático de encontrar uma saída para a ameaça do novo poder pessoal às instituições. E possibilite a superação da mediocridade que está levando o país ao caos e à ruína.

Terceira via pressupõe identidades sociais, de classe, de grupo ou de outros agentes sociais de convergência de interesses e de visão de mundo em favor do país e em favor do bem comum. Tudo isso foi aqui fragilizado em decorrência de transformações sociais do último meio século.

O Partido dos Trabalhadores emergiu quando a classe operária já havia entrado em declínio. Não por acaso seus intelectuais orgânicos o definiram como “dos trabalhadores” e não apenas como Partido Operário, no intento de ampliar as bases sociais do partido.

Já no mundo rural, a categoria “trabalhadores” era abstrata. Não unificava. Porque trabalhador quer ali dizer outra coisa, a pessoa trabalhadeira, cumpridora das obrigações, que não é preguiçosa, mas não necessariamente identificada com a ideologia operária do trabalho em conflito com o capital.

Além disso, o Partido dos Trabalhadores procurou atrair e representar, e fez bem, categorias envolvidas em conflitos por direitos, como o direito à terra de trabalho. Portanto, em situação social transitória, protagonistas de demandas sociais não permanentes. Caso de todos aqueles cujo vínculo com a terra é precário, vínculo que não representava conflito próprio da sociedade de classes. Categorias sociais cujos interesses e demandas ainda pedem a compreensão científica de sua peculiar inserção no mundo capitalista.

A clientela potencial da reforma agrária em todas as partes está em situação de mudança social. Realizada, a reforma a extingue. Ao transformá-la em proprietária de terra, integra-a numa classe social historicamente conservadora. Para ela, o discurso operário diz respeito a uma ideia alheia. Quando muito, sobra-lhe a mística da agricultura familiar e dos valores sociais da relação entre o homem e a natureza.

O mesmo se dá com o empresariado. Os empresários da Fiesp e os empresários do agronegócio não têm como ver o mundo a partir da mesma perspectiva nem dos mesmos interesses. O agronegócio tem no seu passivo a anomalia da questão agrária e da questão ambiental, fundamento de questões sociais como a da reforma agrária e a do reconhecimento do direito de territorialidade das populações indígenas.

As classes sociais, no Brasil, são fragmentárias e estão divididas quanto aos próprios interesses. O que dificulta a formulação de uma terceira via. A qual não depende de pessoas mas da aliança política e da coalização democrática que expressem interesses sociais que desbloqueiem nossa possibilidade histórica de desenvolvimento com democracia.

Lula ainda tem condições de personificar essa grande causa pós-petista e pós-autoritarismo bolsonarista. Já não se pode dizer o mesmo em relação a Bolsonaro: seu governo, equivocado em todos os âmbitos, destruiu a confiança que nele tinha boa parte do eleitorado que o pôs na Presidência.

Nesse cenário, sem sujeitos sociais de referência, a terceira via é uma quimera. Na nova era possível do pós-bolsonarismo, o protagonismo será da aliança que construir uma agenda de demandas sociais e de reformas sociais para consertar os efeitos destrutivos da barbárie que se apossou do país. Nesse sentido, sem as esquerdas não haverá terceira via. Se renovadas e atualizadas, elas poderão ser portadoras da consciência social e política que reconheça os problemas que pedem mudança.

A direita, em todas as partes, é ditadura e repressão. Acha que os problemas sociais podem ser resolvidos ou no porrete ou na indiferença em relação à miséria e à morte. O fundamento de uma terceira via é a do primado da vida e da ética correspondente, que nos livre do autoritarismo e da miséria e nos devolva o sentido da esperança.

*José de Souza Martins é sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Professor da Cátedra Simón Bolivar, da Universidade de Cambridge, e fellow de Trinity Hall (1993-94). Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, é autor de “Sociologia do desconhecimento - ensaios sobre a incerteza do instante” (Editora Unesp).

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