EDITORIAIS
General Heleno deve explicações sobre
garimpo
O Globo
Se alguém ainda precisava ser lembrado de
que o garimpo na Amazônia acontece à margem da lei, o reforço veio neste mês.
Um grupo de trabalho coordenado pela Polícia Federal e pela Receita Federal
investigou e estudou o assunto por cerca de um ano. O relatório final, aprovado
pela secretaria executiva da Estratégia Nacional de Combate à Corrupção e à
Lavagem de Dinheiro (Enccla), do Ministério da Justiça e da Segurança Pública,
é categórico ao mostrar que o país não tem mecanismos para evitar que a exploração
e o comércio de ouro sejam usados para lavagem de dinheiro.
Como se isso já não fosse uma catástrofe, o
relatório também deixa claro que a Permissão de Lavra Garimpeira, licença
necessária para o garimpo, é emitida sem critério pela Agência Nacional de Mineração,
autarquia vinculada ao Ministério de Minas e Energia. Até áreas onde não há
metal precioso são usadas para “esquentar” o ouro retirado de locais como
terras indígenas e reservas ambientais.
“A caracterização constitucional do
garimpeiro como trabalhador vulnerável contrasta com a realidade hoje
verificada na maioria dos garimpos do país, em que a atividade é executada com
o maciço emprego de maquinário e de outras tecnologias que exigem vultosos
investimentos”, diz o estudo.
Estimativas do Ministério Público Federal mostram que 174 toneladas de ouro foram vendidas em 2019 e 2020, das quais cerca de 30% a partir de Permissões de Lavra Garimpeira e 70% de lavras mineradoras. Nem mesmo órgãos com a responsabilidade e os recursos do Gabinete de Segurança Institucional, sob o comando do experiente ministro Augusto Heleno, têm servido de anteparo para a barafunda mafiosa causada pela inoperância da Agência Nacional de Mineração.
Heleno é também secretário executivo do
Conselho de Defesa Nacional. É sua responsabilidade analisar e dar aval a
projetos de mineração numa faixa de 150 quilômetros da fronteira do Brasil com
outros países. Somente neste ano, ele autorizou sete projetos de busca de ouro
na região de São Gabriel da Cachoeira, cidade amazonense localizada numa das
áreas mais intocadas da floresta tropical.
Heleno se defende argumentando que os
processos são instruídos pela Agência Nacional de Mineração. A declaração não
satisfez o Partido Verde, que levou a questão ao Supremo, nem deputados na
Câmara, que expediram convite para o ministro dar explicações.
O Ministério Público Federal do Amazonas
também reagiu. Requisitou à Agência Nacional de Mineração documentos referentes
a assentimentos prévios para mineração na região de São Gabriel da Cachoeira expedidos
pelo Gabinete de Segurança Institucional. Até o momento, não houve resposta.
Heleno pode até estar certo quando diz não
ter feito nada ilegal. Mas as perguntas são outras: 1) o chefe da espionagem
não sabia que a exploração de ouro é largamente ligada a criminosos?; 2) se
sabia, não temeu ser conivente com as máfias que controlam o garimpo, o
contrabando e a lavagem do dinheiro? O Brasil aguarda suas respostas.
Governo precisa dar satisfação às famílias
ludibriadas pela Itapemirim
O Globo
O risco está na natureza do capitalismo.
Quando planos dão errado, os empreendedores dignos do nome buscam soluções para
voltar ao prumo. O coronel Harland David Sanders, fundador da rede Kentucky
Fried Chicken, só ficou milionário depois de vários fracassos. Steve Jobs teve
de entregar o comando da Apple, e a empresa chegou perto da falência até ele
voltar e implementar sua visão vencedora. Ao que tudo indica, porém, o fracasso
da Itapemirim Transportes Aéreos (ITA), do empresário Sidnei Piva, nada tem a ver
com o risco inerente aos negócios — e muito com as relações nebulosas entre
empresas e Estado, tão comuns no Brasil.
É do interesse do consumidor, portanto do
governo, aumentar a competição no setor aéreo, dominado por poucas companhias.
Mas, no caso da ITA, desde o início havia indícios de que os consumidores
sairiam perdendo.
A Itapemirim começou a operar no transporte
terrestre de passageiros na década de 50 do século passado. Tornou-se uma das
marcas mais conhecidas do setor. Em 2016, o grupo entrou em recuperação
judicial, processo ainda em andamento. Pelos últimos dados publicados, a
empresa tem R$ 2,2 bilhões em passivos tributários e um endividamento sujeito a
recuperação judicial da ordem de R$ 250 milhões.
Apesar disso, Piva decidiu começar a operar
voos em plena pandemia, na pior crise do setor em todo o mundo. O governo
apoiou a iniciativa. Em outubro do ano passado, o ministro Tarcísio Freitas, da
Infraestrutura, anunciou numa transmissão ao vivo ao lado do presidente Jair
Bolsonaro que a Itapemirim entraria no setor. No vídeo, Bolsonaro desembrulhou
a miniatura de um ônibus da Itapemirim. O senador Flávio Bolsonaro publicou
numa rede social: “Aviso aos pessimistas: O Brasil vai decolar!”.
Em maio deste ano, quando a ITA começou a
vender passagens, informou que tinha o apoio de dois fundos árabes, sem
declarar os nomes. O dinheiro acabou não chegando. Em novembro, Piva mudou a
conversa. O aporte não era mais necessário porque ele buscaria o capital de
pequenos investidores. Na recuperação judicial do grupo, os credores apontaram
uso inapropriado dos recursos.
Na noite da sexta-feira, o grupo Itapemirim
anunciou que estava paralisando temporariamente todos os voos, afetando cerca
de 40 mil clientes com passagens compradas para voar até o dia 31 de dezembro.
Um absurdo.
Na segunda-feira, o ministro Tarcísio
tentava explicar o papel do governo na confusão. É insuficiente a desculpa de
que a empresa seguiu à risca as exigências da Agência Nacional de Aviação Civil
(Anac). Mesmo que não tenha havido irregularidade (algo que ainda precisa ser
investigado com rigor), o presidente Bolsonaro, o ministro Tarcísio e o senador
Flávio devem explicações a todas as famílias cujas férias de final de ano foram
estragadas pelos cancelamentos de última hora da ITA.
Sem investimento e sem rumo
O Estado de S. Paulo.
Não adianta mexer no teto para investir mais. Obstáculos mais importantes são o Orçamento engessado e a má administração
Orçamento engessado e má administração são
os maiores obstáculos.
Com apenas R$ 44 bilhões para investir em
estradas, energia, saneamento, escolas e outras instalações públicas, o poder
federal pouco poderá fazer em 2022 para reanimar a economia, elevar as
condições de vida dos brasileiros e aumentar o potencial de crescimento do
País. Descontada a inflação, será o menor valor investido desde 2010 e um dos
menores, com certeza, desde o fim da 2.ª Guerra Mundial. O ponto mais alto
desse período, R$ 201 bilhões, foi alcançado em 2012. As somas diminuíram até
R$ 63 bilhões em 2016 e a partir daí a queda continuou com algumas oscilações.
O capital privado tem compensado em parte esse declínio, mas seria preciso
investir muito mais para modernizar a capacidade produtiva, ampliá-la e criar
condições para uma expansão mais veloz do Produto Interno Bruto (PIB). O total
investido tem sido insuficiente até para cobrir o desgaste do acervo público.
Nenhuma solução simples e politicamente
fácil será eficaz. Já se propõe, por exemplo, retirar o investimento público do
teto de gastos. Reduzir o valor investido, argumenta-se, tem sido uma das
formas de ajustar a despesa ao limite constitucional. É verdade, mas esse
problema é muito mais político e administrativo do que financeiro. Com ou sem
teto, o dinheiro para obras e outros gastos produtivos sempre será severamente
limitado pelo engessamento orçamentário, um tema para reforma. Cerca de 93% das
verbas são destinadas a despesas obrigatórias, como salários do funcionalismo e
benefícios previdenciários. Mas também é preciso avaliar o uso de cada real.
É preciso verificar se tem sentido, neste
momento, destinar R$ 8,8 bilhões a investimentos militares e apenas R$ 6,8
bilhões à Infraestrutura, R$ 4,7 bilhões à Saúde e R$ 3,7 bilhões à Educação.
Mas há detalhes mais inquietantes.
Enquanto se lamenta a falta de recursos
para investir, muitos bilhões são aplicados de acordo com interesses privados
de parlamentares e de membros do Executivo, incluído o presidente.
Congressistas chegaram a reservar R$ 5,7 bilhões para despesas eleitorais do
próximo ano. O valor poderá ser menor, na versão final da lei orçamentária, mas
dificilmente será uma soma razoável e compatível, numa avaliação muito
generosa, com as limitações do Tesouro e as urgências nacionais.
Muito dinheiro será destinado, talvez de
forma até obscura, a emendas de senadores e deputados. Parte dessas verbas será
aplicada em investimentos, mas em projetos definidos segundo objetivos
eleitorais de cada parlamentar. Orçamento federal, supostamente, deveria ser
voltado para prioridades federais, mas quantas autoridades, em Brasília, cuidam
de questões tão amplas?
O presidente Jair Bolsonaro destaca-se, na
história da administração brasileira, por seu escasso envolvimento em funções
de governo. Jamais cuidou seriamente de programas de infraestrutura,
revitalização da indústria, integração internacional, preservação ambiental,
saúde pública, modernização do ensino, democratização educacional e avanço
científico e tecnológico. Sua participação em ações de interesse público foi
geralmente improvisada e sujeita a objetivos eleitorais. É o caso da conversão
do programa Bolsa Família em Auxílio Brasil, instrumento de popularização e de
caça ao voto.
Programas como o Bolsa Família, quando
concebidos e executados com seriedade, são essenciais num país como o Brasil,
embora a redução da pobreza, no médio e no longo prazos, dependa do ritmo e das
características do desenvolvimento econômico e social. Também é preciso cuidar
dos padrões salariais dos servidores, mas sem confundir esse tema com as
condições imediatas do jogo eleitoral.
Não há, enfim, como cuidar seriamente das
finanças públicas sem uma razoável definição das funções do Estado, sem uma
clara fixação dos objetivos de governo e, enfim, sem enumeração de prioridades
e de planos e programas. É muito difícil, no entanto, falar de ações e de metas
de governo quando o presidente desconhece o sentido de governar e pouco se
preocupa com isso.
Ainda resta lucidez no governo
O Estado de S. Paulo
Com ações de combate à covid-19, servidores públicos resgatam esperança de que Executivo não foi completamente loteado por Bolsonaro
A insensatez de Jair Bolsonaro ao tratar da
pandemia de covid-19 faz com que a sociedade se questione até quando o governo
vai fingir que o avanço de casos e o crescimento no número de mortes não é
problema do Executivo. Por outro lado, reações como a da diretoria da Agência
Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), que aprovou a vacinação de crianças
contra o novo coronavírus a despeito da intimidação liderada pelo presidente,
dão esperança de que o setor público não foi completamente loteado entre os amigos
da família Bolsonaro. A médica Rosana Leite, que comanda a Secretaria
Extraordinária de Enfrentamento à Covid-19 do Ministério da Saúde, é mais uma
servidora que se une a esse esforço.
Em entrevista ao Valor, a secretária
demonstrou lucidez, uma qualidade rara na gestão Bolsonaro. Ela manifestou
preocupação com a queda no uso de máscaras e a baixa procura pela dose de
reforço por parte da população – fundamental para conter o aumento de casos
graves relacionados à variante Ômicron. “Nós já distribuímos 40 milhões de
doses de reforço e só 15 milhões foram aplicadas até agora”, disse, alarmada.
“A gente espera que a população contribua. Percebemos muitas pessoas não usando
máscaras.”
Na avaliação de Rosane Leite, a estratégia
de combate à covid-19 em 2022 deve associar vacinação e distanciamento social.
Ela ressaltou que a imunização de crianças entre 5 e 11 anos de idade é
necessária para conter a pandemia e que o uso de máscaras não apenas não deve
ser flexibilizado, como adotado, também, no caso de gripe.
É quase surpreendente que o Ministério da
Saúde conte com um quadro que avalia uma situação crítica com seriedade e
clareza, em sentido diametralmente oposto ao que faz Bolsonaro, inimigo da
vacinação, do distanciamento social e das máscaras.
Basta lembrar o que o ministro Marcelo
Queiroga disse ao ser questionado sobre os motivos do governo para fazer uma
consulta pública sobre a vacinação infantil, já liberada pela Anvisa: “A pressa
é inimiga da perfeição”. A prioridade do ministro responsável pela pasta da
Saúde em uma pandemia que já vitimou 618 mil pessoas é uma só: defender
Bolsonaro e de quebra ganhar votos de bolsonaristas empedernidos na próxima
eleição. “O presidente Bolsonaro é um grande líder, tem nos apoiado
fortemente”, disse Queiroga, que não viu nenhum problema na escandalosa
intimidação de servidores da Anvisa por parte de Bolsonaro.
O avanço da variante Ômicron tem feito
autoridades voltarem a cogitar a adoção de medidas restritivas nos Estados
Unidos, Canadá, Reino Unido e Europa. Enquanto isso, o presidente Jair
Bolsonaro reagiu agressivamente à recomendação da Anvisa de cobrar certificado
de vacinação de visitantes estrangeiros e disse, orgulhosamente, em um evento
no Palácio do Planalto, que o uso de máscaras era proibido em seu gabinete.
Na distopia esquizofrênica em que se
transformou o Brasil nos últimos três anos, a sociedade precisa contar com a
força de suas instituições para sobreviver. Foi graças ao Supremo Tribunal
Federal (STF) que Estados e municípios tiveram autonomia para adotar medidas
para conter a pandemia. Responsável por oferecer as primeiras vacinas ao País,
o governo de São Paulo continua a optar pela responsabilidade e prorrogou o uso
obrigatório de máscaras até 31 de janeiro. Foi também do STF que veio a
imposição ao Executivo de edição de uma portaria para cobrar o comprovante de
imunização para estrangeiros que ingressam no País.
A imprensa tem exercido papel relevante ao
divulgar informações sobre a pandemia e de tomar para si a responsabilidade de
levantar indicadores sobre casos e mortes, algo que o governo tentava esconder.
Esse esforço tem sido reconhecido pela sociedade. Uma pesquisa do Instituto FSB
e da Confederação Nacional da Indústria (CNI) mostrou que 65% da população é
favorável à exigência da carteirinha de vacinação por estabelecimentos e que
66% têm medo de conviver com pessoas que não se imunizaram – como o presidente.
O vice de Lula
Folha de S. Paulo
Aceno a Alckmin tem efeito simbólico, mas
alcance ainda está por ser conhecido
Luiz Inácio Lula da Silva já havia perdido
três disputas presidenciais quando, em 2002, decidiu indicar aos eleitores que
pretendia deixar radicalismos de lado e governar com ideias e forças políticas
mais amplas. Um dos sinais mais importantes foi a escolha do vice na chapa, que
recaiu sobre o empresário José Alencar, então no PL.
Lula ensaia um movimento ainda mais vistoso
agora, com a articulação para concorrer ao Planalto ao
lado do ex-governador de São Paulo e ex-presidenciável Geraldo Alckmin, que
apenas outro dia desfiliou-se do PSDB —o partido que, ao longo de duas décadas,
fez o papel de arquirrival
dos petistas.
Não se imagina que a aliança posa atrair
votos direta e decisivamente. Segundo o Datafolha, 70% dos brasileiros aptos a
votar afirmam que ela não alteraria a possibilidade votar no candidato do PT,
enquanto 16% se dizem mais propensos a essa opção, e 11%, menos.
Alckmin, cabe lembrar, teve desempenho
vexatório com sua candidatura nacional em 2018.
O que existe, desde já, é um impacto no
campo simbólico, o que está longe de ser desimportante numa eleição —e a de
2022 deveria ser mais profícua do que um embate entre o antibolsonarismo e o
antipetismo. Resta muito a saber, porém, sobre o alcance e as ambições do
entendimento, que pode incluir mais nomes e partidos.
O Lula que governou o país de 2003 a 2010
mostrou capacidade de diálogo e negociação, além de disposição para enfrentar
dogmas ideológicos de seu partido, em particular na área econômica. A qualidade
das alianças e a solidez das convicções é que deixavam a desejar.
Refratários a repartir o poder, os petistas
apossavam-se dos principais postos e preferiam manter laços meramente
fisiológicos com os aliados —e isso quando as relações não descambavam para
grandes escândalos de corrupção.
A gestão responsável da economia e a agenda
reformista foram sendo gradativamente abrandadas, à medida que o país se
aproveitava de um momento global favorável. A imprudência mais tarde se
acentuaria e resultaria em desastre recessivo sob Dilma Rousseff.
O discurso raivoso contra críticos e
adversários, nunca abandonado, voltou a se intensificar com a derrocada. Apeado
do Planalto pelo impeachment, o PT perdeu espaço em administrações estaduais e
municipais pelo voto.
Hoje Lula tem a seu favor a enorme rejeição
a Jair Bolsonaro (PL), o desgaste da Operação Lava Jato e a memória dos bons
resultados obtidos em seus dois mandatos. Pode vir a ser o suficiente para
vencer o pleito do próximo ano, mas governar demandará uma composição política
e programática acima do oportunismo eleitoral.
Fed contra a inflação
Folha de S. Paulo
Banco central americano prefere ser
conservador ao indicar aperto nos juros
O agravamento da inflação é global e já
mobiliza uma revisão da conduta de diversos bancos centrais. Em reação à
escalada dos preços ao consumidor, que ameaça contaminar as expectativas de
longo prazo, o americano Federal Reserve indicou
que será menos paciente.
Além de antecipar o final de suas
intervenções no mercado de títulos públicos, agora esperada em março, o Fed
projetou alta da taxa básica de juros de 1,5 ponto percentual até o final de
2023 —com metade desse percurso a ser percorrido no ano que vem.
Para os padrões do banco central emissor da
principal moeda mundial, que baliza cerca de 70% das transações comerciais,
trata-se de uma mudança substancial.
É cedo para afirmar que os Estados Unidos
estão diante de um cenário de inflação persistente. Famílias e empresas,
acostumadas à estabilidade, tendem a não incorporar saltos pontuais de preços
em seus cálculos de longo prazo. Tampouco existem no país mecanismos
automáticos de indexação.
Mesmo assim, a situação preocupa. A taxa
para os consumidores chegou a 6,8% nos 12 meses encerrados em novembro, patamar
mais elevado em décadas.
A maior parte das pressões é concentrada em
bens duráveis e itens como alimentos e energia, cuja demanda foi impulsionada
pela pandemia. O fenômeno deve arrefecer, mas restam incertezas.
O risco é que a inflação se revele mais
duradoura, o que pode alterar o comportamento do setor privado. Com a economia
quase de volta ao pleno emprego e transformações em curso no mercado de
trabalho, parece possível que os salários passem a subir mais.
O melhor desempenho da renda sem dúvida
seria uma boa notícia ante o quadro atual de desigualdade social elevada, mas
para o Federal Reserve pode significar uma dificuldade maior para manter a
variação de preços em torno da meta, fixada em 2% ao ano.
A boa notícia é que por ora os mercados
financeiros ainda não anteveem que a instituição terá de elevar os juros acima
de 2,5% ao ano ao final do ciclo. Dados os riscos, porém, o banco central
decidiu retomar as rédeas, considerando que adotar providências mais cedo
diminui a probabilidade de ser obrigado a fazer mais depois.
Muitas das dúvidas devem ser esclarecidas em 2022, que promete ser mais difícil para mercados acostumados a estímulos que agora começam a ser revertidos.
Nova esquerda vence no Chile, mas direita
domina Congresso
Valor Econômico
O novo presidente Boric terá de governar
fazendo concessões, sob pressões de uma arraigada direita conservadora e de uma
esquerda radicalizada, que domina a Constituinte
Três décadas do modelo econômico e político
do Chile ruíram no processo que levou à eleição do esquerdista Gabriel Boric à
Presidência no domingo, com a maior votação para o cargo até hoje. Seu
opositor, José Antonio Kast, um radical de direita, também mostrou força
incomum (44%), deixando para trás as coalizões que do centro partiam para a
direita ou esquerda, que governaram desde a redemocratização. A transição tem
tudo para ser acidentada.
Se há uma onda de esquerda de volta ao
continente ela tende a ser mais instável e possivelmente mais breve do que as
anteriores. Candidatos de uma nova esquerda ou radicais estão entrando no vácuo
deixado pela insatisfação da população com os políticos e passando à frente dos
partidos tradicionais, mesmo os da esquerda tradicional, em meio a uma
fragmentação política em que as legendas estabelecidas não conseguem mais
votação majoritária, mas mantêm força no Legislativo. Pedro Castillo, líder do
Peru Livre, ganhou as eleições no fim de julho e, no que se tornou recente
tradição do país, foi alvo de várias tentativas de impeachment - que apearam quatro
presidentes em quatro anos.
Outra diferença importante é que os novos
eleitos, Boric e Castillo, são bem minoritários no parlamento, algo distinto
das bancadas significativas que sedimentaram as administrações do PT, por
exemplo, ou dos quase sempre dominantes peronistas argentinos. Ainda assim, uma
representação parlamentar expressiva não faz milagres e nada pode contra um
governo que não faz a coisa certa. Os peronistas levaram uma surra nas eleições
de meio do mandato da dupla Alberto Fernández e Cristina Kirchner, que
trouxeram o partido de volta ao poder após erros graves do antecessor, Mauricio
Macri, cuja coalizão ganhou agora ímpeto eleitoral e apoio parlamentar para
disputar o comando do país.
No Brasil, o domínio petista de 13 anos foi sucedido por um governo fraco, resultante do impeachment e alvejado por denúncias de corrupção, e, em seguida, pela implosão do sistema, com a eleição de um medíocre político profissional que se vendeu como outsider, Jair Bolsonaro, cuja péssima gestão e políticas grotescas podem levar de volta ao Planalto o ex-presidente Lula, bem à frente nas pesquisas.
O impulso político galvanizado pela nova
esquerda no Chile (paradoxalmente aliada a seu mais longevo representante, o
Partido Comunista), que eliminou o centro, tem fôlego. Boric se formou nas
lutas estudantis pelo acesso à educação, proibitiva no país, ao qual
acrescentou demandas sociais, econômicas e identitárias. A desigualdade de
renda é um flagelo na nação mais rica da América Latina (em renda per capita).
O modelo pinochetista, que retirou o Estado do sistema previdenciário,
aprofundou esse desnível e levou o sistema de aposentadorias ao impasse. O
cidadão chileno se aposenta com o que conseguiu poupar e entregar aos fundos de
pensão, sem participação do Estado e dos empresários - modelo que o ministro
Paulo Guedes tentou implantar no Brasil. Como a maioria tem renda baixa, sua
aposentadoria será menor ainda.
Mas os protestos de 2019 fizeram mais do
que abalar um dos pilares da economia e colocaram em xeque todo o modelo
político da Constituição pinochetista. Uma Constituinte foi eleita para
modificá-lo, com predomínio de forças tão ou mais à esquerda do que as que
Boric representa. Ela vai apresentar uma nova Carta em julho, que deverá ir a
plebiscito até 60 dias depois. A Constituinte tem poderes para mudar o sistema
de governo, o que poderá levar a novas eleições e à saída de Boric do poder.
A economia chilena não vai mal no curto
prazo, apesar da inflação (6%). Com medidas contra a pandemia que consumiram
14% do PIB, o crescimento pode chegar a 11% este ano, e cair a 2% em 2022.
Boric em tese é contra corte de gastos, mas haverá pressão para fazê-lo. As
agitações políticas espantaram investidores externos, que desde 2019 retiraram
US$ 50 bilhões do país (FT).
Boric terá de fazer o que não fez no primeiro turno e fez mais no segundo: buscar o apoio de outras forças políticas, entre a quais a fração de esquerda Convergência, que governou o país, é aliada natural. Os partidos à direita, com os do presidente Sebastián Piñera e de Kast, somados, têm maioria na Câmara, enquanto a legenda de Boric tem 37 dos 155 deputados. A direita domina metade do Senado e a Frente Ampla de Boric elegeu 5 dos 50 senadores. O novo presidente Boric terá de governar fazendo concessões, sob pressões de uma arraigada direita conservadora e de uma esquerda radicalizada, que domina a Constituinte. Novato, não terá vida fácil - e sabe disso.
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