As duas boas notícias foram suficientes
para que um clima de vitória antecipada tomasse conta, pelo menos daquelas
franjas da campanha de Lula que se percebe nas redes sociais, nos humores da
militância em geral e até mesmo em declarações e postagens dos seus quadros
políticos mais afoitos. O próprio candidato - no pleno e atento exercício do
seu ofício de injetar otimismo para elevar ainda mais o moral da tropa – não
escondeu o bom humor, dizendo que Bolsonaro não dormiu após a divulgação.
A recepção à citada pesquisa assume ares de uma onda reforçadora do argumento em favor de um “voto útil” à esquerda, que consume a eleição no primeiro turno, não só para assegurar a vitória de Lula, como para ajudar a desativar manobras e atos golpistas de Bolsonaro que intentem inibir, constranger e/ou desacreditar as eleições. Manobras e atos que, com razão, se supõe mais difíceis de terem êxito no primeiro turno, dada a grande quantidade de candidatos aos diversos cargos eletivos em disputa nos pleitos simultâneos, todos eles, a princípio, interessados diretos no respeito ao resultado das urnas. Penso que essa onda tem tido o poder de influenciar de modo importante as dimensões subjetivas do noticiário da imprensa e até o colunismo especializado, seja de jornalistas ou de estudiosos da área, a ponto de outros aspectos serem ofuscados pela virtual ordem de grandeza do movimento mencionado.
O Ipespe também é um instituto que
goza de ótima reputação. Trabalha com pesquisas mais frequentes – quinzenais e
parece que, a partir de agora, até semanais – o que permite flagrar mais
detalhes e apreender um sentido de processo, de filmagem, que vai além de
fotografias mais estanques. Por outro lado - é óbvio, mas é bom frisar - faz
levantamentos de dimensões menores que os do Datafolha, assim como
tendem a ser menores seus impactos sobre a opinião leiga. As diferenças não
fazem um instituto ser mais confiável que outro – ambos o são, por inúmeras
razões que não vem ao caso enumerar aqui – apenas alertam para a impropriedade
de se comparar diretamente os achados das pesquisas de um com os achados das
pesquisas do outro.
Isso posto, consideremos que o Ipespe
também divulgou uma nova pesquisa ontem, o mesmo dia em que foi divulgada a do Datafolha.
Pelo que pude conferir, foi a quinta pesquisa Ipespe em dois meses,
sendo as quatro anteriores divulgadas nos dias 6 e 22 de abril e nos dias 6 e
20 de maio. Portanto, a imediatamente anterior apenas uma semana antes da que
veio a público ontem. Nessa última, a diferença entre as intenções de voto em
Lula e em Bolsonaro é de 11 pontos percentuais (45X34), bem menor, portanto,
que aquela registrada pelo outro instituto. No caso do Ipespe, ao longo
das suas cinco pesquisas do período acima mencionado, essa diferença vem
oscilando moderadamente para baixo, oscilação que sempre pode ser posta em
dúvida em razão das margens de erro de todas as pesquisas. Era de 14 pontos
(44x30) no início de abril, permaneceu a mesma (45x31) no final daquele mês,
passou a ser de 13 pontos (44x31) no começo de maio, de 12 pontos (44x32) no
dia 20.05 e agora chegou a 11.
O contraste entre os dados dos dois
institutos é auto evidente: 21 pontos, o limite atual do intervalo de variação
da diferença entre Lula e Bolsonaro, do final de março para cá, conforme o Datafolha,
é quase o dobro daquele limite atual do intervalo captado pelo Ipespe,
desde o começo de abril. Lá no começo do período observado, os dados dos dois
institutos sobre a diferença entre os dois líderes em intenção de voto eram
próximos (14 e 17 pontos). Agora parece, no susto, que cada instituto pegou um
caminho.
Está fora do objetivo e alcance desta
coluna dar explicação convincente para a discrepância de patamares. Já
grisalhei há vários anos e não tenho a menor intenção, nem competência, de me
arvorar a ser mais um novíssimo entendido em pesquisas, dos que têm se espalhado
por aí, seja como legistas de galinhas mortas ou adivinhos de ovos ainda não
postos, alguns com o requinte de quererem ser ambas as coisas. A mesma alva
condição de quase pós-grisalho sugere-me, contudo, que é equívoco deduzir, da tal
discrepância, que um dos institutos “erra” ou que as duas pesquisas remetem a
realidades distintas. Acho mais sensato admitir que possam ser duas faces de
uma mesma realidade. A fotografia do Datafolha indica uma possibilidade
(um arranque de Lula) que não contradiz o processo que o filme do Ipespe mostra
até aqui, mas também não é sua consequência lógica, como os fogos de artifício
sugerem.
Se não é possível explicar facilmente a
discrepância, é possível compreender bem a convergência (que também existe)
entre o que vêm dizendo, há meses, as pesquisas dos dois institutos citados e
de outros grupos profissionais igualmente respeitáveis, como o Genial Quaest
e o Idea Data. Para isso, recorro
ao que interpretou e explicou Antônio Lavareda – um profissional do ramo, que
interpreta e explica, bem além do que pode fazer um legista e aquém (ainda bem)
do que pretende um adivinho – após a última rodada da série de pesquisas Ipespe,
pela qual é responsável.
A afirmação de Lavareda é que a chance de a
eleição ser decidida em um turno vem crescendo. E o argumento é que isso ocorre
à medida em que aumenta o número de pessoas que se decidem por Lula ou por Bolsonaro
e à medida em que as demais pré-candidaturas não conseguem transpor uma
barreira ao próprio crescimento, posta também (embora saibamos que não só por
isso) pela própria polarização em curso. É a tão comentada (e certamente também
desejada) cristalização da polarização, que por ser, neste momento, real,
ameaça, na visão de muitos (devemos excluir Lavareda desse veredicto) tornar a
campanha eleitoral uma mera reprodução ampliada de um processo a essa altura já
irreversível.
Deixando de lado as previsões, fiquemos naquilo
que o já filmado nos mostra. Um estreitamento paulatino do espaço para
alternativas e, se mantida essa condição, aumento das chances de não haver
segundo turno. É importante prestar atenção no modo gerúndio: as chances
aumentam, mas além de não ser um jogo jogado, também não se tornou um jogo
marcado, dependente apenas da vontade e dos movimentos do líder das pesquisas. Ninguém
foi eliminado e todos podem ter algum papel. Há outras coisas em jogo, além do
título. Numa palavra, dizer que crescem as chances de se decidirem as coisas no
primeiro turno não leva automaticamente a dizer que é assim porque Lula disparou.
O primeiro dito é afirmativo e é um consenso nas pesquisas. O segundo dito é
sugestivo e, por enquanto, apareceu só no Datafolha. Tomar os dois ditos
por um só seria um erro de Lula, um flerte com o autoengano. Mas é mera questão
de tempo, dirão os convictos. Sem ter como contestar, sigo outro caminho. Sem
podermos saber agora se a medida mais exata da diferença entre as intenções de
voto em Lula e em Bolsonaro é 11 ou 21, exploremos aspectos políticos de uma e
de outra hipótese. Análises políticas não são matéria de estatísticos, por mais
que estatísticos sejam bem vindos como suportes ao realismo das reflexões.
Reflitamos primeiro a partir dos números da
pesquisa do Ipespe. Sem maiores novidades, se o quadro é esse, o feijão
com arroz é a pedida geral. Lula precisará continuar a segurar seus radicais
para que siga, a conta-gotas, a pescaria de aliados nos estados, contornando, quando
não minando, os partidos. Terá como objetivo ganhar no primeiro turno, costeará
esse alambrado, mas disputar um segundo turno contra Bolsonaro e vencê-lo seguirá
sendo a hipótese mais provável; o próprio Bolsonaro precisará seguir no
morde/assopra, um olho na urna, outro na insurgência contra elas. Seu
malabarismo é refazer pontes detonadas com parte do seu eleitorado de 2018 e
manter ativas as falanges insurgentes. É o tipo do jogador que depende cada vez
mais de terceiros para se dar bem, com o agravante de que não é sua praia
confiar em parceiros; Ciro Gomes precisará, ao estilo anfíbio de esgrima e luta
livre, cada vez mais diversificar os destinatários para manter sua
pré-candidatura a salvo das pressões do voto útil e lulista. Implica falar a um
eleitorado conservador e liberal com um programa econômico ancorado à esquerda,
referência que não quer perder; e Simone Tebet, estreando numa arena
plebiscitária mais afunilada, precisará seguir em busca do tempo perdido pelo
campo que integra. O tempo terá que ser mais lento, para os três rivais à sua
frente, para que ela acelere o seu, faça-se conhecida, ganhe pontos e mantenha
moderada sua rejeição, cujo aumento é inevitável por qualquer candidatura que alcance
idade eleitoral adulta. Será matar um leão todo dia para afirmar-se, perante o
eleitorado, como candidatura de centro e feminina e consolidar, junto a seu
partido e aliados, o espaço conquistado nas últimas duas semanas.
Agora raciocinemos com a hipótese dos
números do Datafolha não serem uma fotografia acidental, sujeita a
reversão na foto seguinte e indiquem uma tendência, a ser captada pelos demais
institutos nos próximos dias e semanas. O quadro não seria inteiramente outro,
mas teria novo traço, merecedor de muita atenção: uma vantagem mais que
confortável de Lula, concretizando o espectro de sua vitória no primeiro turno.
Caberá, nesse caso, observar as inflexões que esse fato poderá ter nas pré-campanhas.
Na de Lula, algumas possibilidades já se
mostram na prática, com o advento da onda de otimismo que comentei no início
desta coluna. Caso se mantenha essa atitude preditiva de que uma vitória de
Lula ocorrerá, mesmo com uma frente de esquerda típica de primeiro turno - apenas
temperada com chuchu e acompanhada de pratos regionais -, a campanha do voto
útil continuará a atormentar a de Ciro Gomes. Mas agora haveria o risco de se somar,
à pressão, o desdém que se destina a um rival já vencido. Desvanecer-se-ão,
provavelmente, as expectativas que porventura hoje existam, em outras áreas de centro
e centro-esquerda, de que o discurso político - ou talvez o programa de governo
do candidato - sofra inflexões de qualquer natureza. Uma alegação, educada, para
frustrar as expectativas, será, no mínimo, a de que não se mexe em time que
está ganhando. Se houver interlocutores insistentes que coloquem a incômoda
questão do depois, arriscam-se a ouvir, polidamente, que a cada dia a sua
agonia ou, no limite, se provocado o afloramento de antiga arrogância, que vão
chorar ao pé do caboclo. Ou no porão do navio cheio de asas, que chegará voando,
do céu ao chão de Brasília, para reconstruí-la. Essa autorreferência fundada no
que pode ser um autoengano não é, a meu ver, uma fatalidade. À volta de Lula
não há mais tantos cegos como outrora, nem todos são áulicos. Haverá, entre
seus aliados, vozes de alguns Flavios Dinos e de petistas moderados, sabedores
de que água é água, ar é ar e terra é terra. Se a pesquisa Datafolha
for, de fato, prenúncio, espera-se que eles estarão empenhados em ganhar a
eleição com mais glória e mais chance de sustentar a vitória na vida difícil
que se seguirá. Mas é razoável pensar que riscos da onda precoce serão tanto
maiores quanto mais cedo as opções forem tiradas do caminho.
Na próxima semana tratarei de possíveis
repercussões desse novo quadro, que muitos supõem, talvez com razão, ter sido revelado
pela mais recente pesquisa Datafolha, sobre as três outras candidaturas,
antes comentadas à luz da hipótese fílmica, a do Ipespe. Sobre isso adianto
apenas, aqui, impressões de momento, carentes ainda de melhor reflexão. Penso
que talvez Bolsonaro, de fato, não tenha dormido e que Ciro Gomes menos ainda.
Já Simone Tebet poderá não ser afetada, ou talvez o seja positivamente, não
pela ascensão de Lula, em si, mas pelo correspondente enfraquecimento relativo
de Bolsonaro, que essa ascensão suscitará, caso se confirme.
Ocioso dizer que essas impressões imediatas
servem à tentativa de me afastar de legistas e adivinhos da política. Mas,
apesar de seus pesares, os primeiros são levados a constatar, em suas
necrópsias, e os segundos a se surpreender, em suas prospecções, com a condição
da política de não comportar espaços vazios que fiquem desocupados além de um
curtíssimo prazo. Em poucos campos como nela vale a máxima de Gentil Cardoso:
“quem pede tem preferência, quem se desloca recebe”. E vice-versa.
*Cientista político e professor da UFBa
Um comentário:
11 ou 21 a diferença é grande,e que assim seja.
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