domingo, 29 de maio de 2022

O que a mídia pensa: Editoriais / Opiniões

Editoriais

A eleição não está decidida

O Estado de S. Paulo

Centro democrático tem espaço para crescer, pois são muitos os brasileiros que não só rejeitam o populismo que atrasa o País, como anseiam por ideias racionais para o futuro

Faltando longos cinco meses até a eleição, o atestado de fracasso do governo de Jair Bolsonaro (PL) é o dado mais concreto que pode ser extraído da última pesquisa Datafolha, divulgada no dia 26 passado. A análise dos recortes socioeconômicos da pesquisa evidencia o alto preço que Bolsonaro, muito provavelmente, pagará por ter decidido ser o líder de um grupo de apoiadores, não o presidente da República.

Cada vez mais brasileiros parecem estar fartos das tentativas do presidente de convencê-los de que os maiores problemas do Brasil são o “ativismo” de alguns ministros do Supremo Tribunal Federal, a “insegurança” das urnas eletrônicas ou, vá saber, as maquinações internacionais para espoliar o País. Os que sofrem as consequências dos problemas reais que Bolsonaro negligencia há quase quatro anos – quando não lhes dá causa – parecem não cair nessas esparrelas.

Entre os beneficiários do programa Auxílio Brasil, 59% declararam voto no ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), enquanto apenas 20% disseram que pretendem votar em Bolsonaro. Entre os desempregados, a situação não é menos desfavorável ao incumbente: 57% pretendem votar em Lula, ante 16% que tencionam votar em Bolsonaro.

O presidente perde para Lula por margens superiores a 20 pontos porcentuais em todos os recortes da pesquisa, exceto entre os brasileiros que têm renda superior a dez salários mínimos (42% a 31%) e entre empresários (42% a 31%). Rejeitado por 54% dos eleitores, Bolsonaro terá enorme dificuldade para convencer o País de que merece permanecer no cargo por mais quatro anos.

O fracasso de Bolsonaro, no entanto, não autoriza concluir que a eleição já estaria decidida em favor de seu principal adversário no momento. Segundo o Datafolha, Lula conta com 48% das intenções de voto no primeiro turno, ante 27% dos que pretendem votar em Bolsonaro. Sem dúvida alguma, é um resultado muito confortável para o petista, que, com esses números, venceria a disputa no primeiro turno se a eleição fosse hoje. Só há um problema: a eleição não é hoje.

Seguramente, há muitos eleitores que declaram voto em Lula porque repudiam os modos de Bolsonaro e sua maneira de conduzir o País. Hoje, o petista é o único pré-candidato que mostra força eleitoral para evitar o desastre da reeleição do incumbente, o que para alguns analistas reduz as chances de uma alternativa eleitoral ao petista e a Bolsonaro. Mas a campanha eleitoral ainda não começou, ao menos não oficialmente, e toda campanha costuma ser cheia de surpresas e reviravoltas.

A ruína dessa chamada “terceira via”, aliás, já foi decretada um sem-número de vezes nos últimos meses, e, no entanto, como diria Mark Twain, parece que a notícia sobre a morte dessa alternativa eleitoral talvez seja um tanto exagerada.

Não se sabe ainda se a “cara” do centro democrático será, por exemplo, a da senadora Simone Tebet (MDB), nome que ganhou destaque nos últimos dias. Neste momento, contudo, o mais importante é constatar que forças relevantes da sociedade mantêm as esperanças de encontrar um candidato capaz de “unir o País”, como diz o texto do manifesto de um extenso grupo de empresários e economistas de alto nível em apoio a Simone Tebet. Ou seja, o exato oposto da beligerância rancorosa de Lula e da truculência reacionária de Bolsonaro. 

O Brasil, portanto, ainda não está condenado a ter de escolher entre Lula e Bolsonaro, como ambos querem fazer crer. São muitos os brasileiros que querem olhar para a frente, que aspiram ao futuro, que anseiam por uma liderança que lhes inspire a esperança de tempos melhores.

Este jornal está ao lado dos milhões de brasileiros que gostariam de ver uma candidatura capaz de livrar o País do populismo que nos condena ao atraso, que resgate a confiança dos cidadãos entre si e nas instituições republicanas, que apresente um plano de governo para reduzir nossa brutal desigualdade social, que trace caminhos para a retomada do crescimento econômico e que promova boas políticas públicas nas áreas de saúde, educação e meio ambiente. E que, enfim, não trate a política como um jogo de soma zero. 

Ideias para o sistema de Justiça

O Estado de S. Paulo

Propostas contidas em estudo divulgado pelo Instituto Millenium miram as tão criticadas sobrecarga e lentidão do Poder Judiciário

Duas críticas sempre presentes em avaliações sobre o sistema de Justiça brasileiro são a sobrecarga do Poder Judiciário e a consequente lentidão no julgamento dos processos sob sua responsabilidade. Desde a instalação do CNJ em 2005, passando pela edição de um novo Código de Processo Civil (CPC) em 2015, foram muitas as iniciativas legais voltadas a remediar esses e outros obstáculos à distribuição de justiça no País.

Para atualizar e contribuir com o debate sobre a reforma da Justiça brasileira, o Instituto Millenium divulgou estudo, de autoria do professor Luciano Timm, apontando ineficiências do nosso sistema de justiça e propondo alternativas para superá-las. 

Primeiro, no que se refere ao peso orçamentário do Poder Judiciário, o estudo mostra que os gastos com esse Poder superam os gastos com saneamento básico e com transferências da União para educação básica a outros entes federativos. Ainda assim, o acesso da população à justiça enfrenta grandes obstáculos. O estudo revela que, na cidade de São Paulo, a maior parte dos que litigam no Juizado Especial Cível (JEC) tem endereço em áreas ricas, enquanto as regiões periféricas sofrem um blackout jurisdicional. O ingresso no JEC é gratuito, mas são as pessoas ricas que mais o acionam. Moral da história: os mais pobres acabam pagando pelo acesso à justiça dos mais ricos (o funcionamento da Justiça é subsidiado por toda a sociedade).

Dentre as propostas para aprimorar a oferta da prestação judicial contidas no estudo está a uniformização, harmonização e maior estabilidade das decisões judiciais. A atual falta de previsibilidade decisória, diz o estudo, aumenta o número de processos, dificulta o número de acordos e encarece o custo de justiça. Com base em dados empíricos, aponta-se que a existência de diferentes decisões sobre um mesmo tema estimula comportamentos oportunistas das partes, que, sem conseguirem antever razoavelmente o desfecho de suas demandas, dificilmente fazem acordo e/ou deixam de recorrer.

Uma ação para diminuir essa litigiosidade, que drena recursos e sobrecarrega os magistrados, foi a previsão no CPC de precedentes judiciais de observância obrigatória em todas as instâncias do Judiciário. Ocorre que, na prática, os órgãos judicantes, inclusive o STF, nem sempre se conformam a tais (ou aos seus próprios) precedentes. Sumo paradoxo.

No que se refere às propostas para aprimorar a demanda pela prestação judicial, está o aperfeiçoamento dos parâmetros para concessão do benefício da justiça gratuita. Tema politicamente sensível por envolver o acesso à Justiça, a manutenção do benefício é defendida no estudo. Por outro lado, afirma-se que os critérios definidores dos respectivos beneficiários seriam equivocados, pois pautados “no sentimento dos magistrados” e não em dados estatísticos. 

Conforme o estudo, a Justiça gratuita é vista como uma forma de não pagar pela utilização do Judiciário e, assim, acaba incentivando a propositura de ações pouco adequadas, que sobrecarregam o sistema de Justiça. Além disso, como visto acima no exemplo do JEC, a jurisdição gratuita é prestada a muitos que poderiam pagar por ela. A falta de critérios objetivos para a concessão do benefício no novo CPC explicita a dificuldade de um acordo legislativo sobre esse tema. 

Outra proposta para aprimorar a demanda pela prestação judicial é a criação de incentivos para a realização de mais acordos. Soluções acordadas, que abreviem o processo judicial, tendem a ser mais baratas e eficientes.

As propostas acima, contidas no estudo divulgado pelo Instituto Millenium, miram justamente as tão criticadas sobrecarga e lentidão do Judiciário. Tanto a estabilidade e a uniformização de suas decisões quanto a calibração do benefício da justiça gratuita e o incentivo à realização de acordos contribuiriam para reduzir o número de processos (desnecessários) e/ou abreviar sua solução. Entretanto, para que tais metas se concretizem, devemos contar com o espírito público dos legisladores e o respeito pela lei dos operadores do direito.

É preciso festejar a Fapesp

O Estado de S. Paulo

Nestes tempos irracionais, a agência de fomento à pesquisa, que faz 60 anos, é ainda mais relevante

Não há como falar em desenvolvimento sem ciência, tecnologia e inovação. A transformação digital, os avanços da medicina, a produção agropecuária e as novas fontes de energia são alguns dos muitos exemplos na longa lista de áreas que se beneficiam diretamente do trabalho de cientistas e pesquisadores. 

Fazer ciência, porém, requer investimento, gente qualificada e muito esforço. Definitivamente não é algo que se alcance da noite para o dia nem que floresça na base do improviso. Por isso mesmo, continuidade é palavra-chave, ao passo que cortes de financiamento ou interrupções, de qualquer natureza, costumam representar um entrave ao êxito de projetos científicos e tecnológicos.

Em São Paulo, a aposta em inovação, tecnologia e ciência deu origem a um bem-sucedido arranjo que já viabilizou o trabalho de centenas de milhares de pesquisadores, resultando em ganhos para toda a sociedade. Com padrão de qualidade internacional, a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) acaba de completar 60 anos. E anunciou mais investimentos em diversas áreas.

A contribuição da Fapesp tem sido grandiosa, assim como seus números: atualmente são cerca de 20 mil projetos apoiados por ano. Em 60 anos, foram concedidas 180 mil bolsas, além de 130 mil auxílios à pesquisa (fomento a projetos específicos sob responsabilidade de um pesquisador). O investimento total supera R$ 50 bilhões e deu origem, entre outros resultados, a 1.580 pedidos de patentes no Instituto Nacional de Propriedade Industrial (Inpi).

Logo no início da pandemia de covid-19, a Fapesp contribuiu para o sequenciamento genético do novo coronavírus, destinando recursos para mais de 100 projetos de pesquisa, o que incluiu a realização de testes clínicos de vacinas e o desenvolvimento de testes rápidos da doença, bem como de ventiladores pulmonares de custo mais baixo. Em outras frentes, sua atuação já beneficiou a produção de cítricos e de etanol, além de milhares de projetos de sustentabilidade na Amazônia.

A lista de realizações da Fapesp, por óbvio, não cabe no espaço deste texto. Faz-se necessário, porém, destacar um dos segredos de seu sucesso: o modelo de financiamento que lhe garante 1% da arrecadação tributária do Estado. A regra, fonte indispensável de estabilidade, consta na Constituição de São Paulo.

A Fapesp foi criada por lei em 1960, mas só começou a funcionar após decreto de 23 de maio de 1962, no governo de Carvalho Pinto (1959-1963). Daí a comemoração dos seus 60 anos agora. Em vídeo exibido em recente solenidade de comemoração, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso resumiu a trajetória da agência: “A Fapesp cumpriu o seu papel”, disse ele, que participou da empreitada na década de 1960. Com autonomia de gestão, transparência e rigor na aplicação dos recursos, a Fapesp tem contribuído para alavancar o desenvolvimento científico brasileiro, algo especialmente relevante nestes tempos em que a irracionalidade desafia a ciência e o bom senso.

Confusão para nada

Folha de S. Paulo

Golpismo, para desviar atenção ou disfarçar incompetência, não está funcionando

A agitação golpista promovida pelo presidente da República produz efeito deletério sobre sua imagem pública. Não foi a primeira vez que o Datafolha detectou coincidência entre um surto de arruaça, de um lado, e a impopularidade elevada de Jair Bolsonaro (PL), do outro.

O auge da avaliação ruim ou péssima da administração federal (53%) foi registrado nas pesquisas de setembro e dezembro de 2021, posteriores à epifania subversiva do Dia da Independência.

À relativa trégua do mandatário se seguiu um princípio de recuperação —apurado na pesquisa de março, quando a reprovação baixou para 46%—, abortado agora (48%), após nova investida contra as instituições da democracia.

As imprecações obstinadas de Bolsonaro contra a votação eletrônica mostraram-se igualmente inúteis para desmobilizar a vasta maioria de brasileiros que afirma confiar nas urnas. Ela caiu de 82% para 73% de março para cá, basicamente pela dúvida incutida na própria base bolsonarista, que ainda assim mais confia (58%) que não confia (40%) no sistema.

Pregar para convertidos em tema de insubordinação aos cânones democráticos afugenta do apoio ao presidente largos contingentes do eleitorado nacional. A rejeição maciça a Bolsonaro por seu turno se reflete em sua larga desvantagem na corrida para a reeleição, o que torna ainda mais postiças e débeis a gritaria sobre fraudes e as insinuações sobre viradas de mesa.

É a economia, no fim das contas, que vai minando a viabilidade da administração Jair Bolsonaro. Se a algazarra golpista se destina a despistar a atenção do público desse terreno minado para o situacionismo, também falha no objetivo.

A aceleração inflacionária deflagrada pela guerra no leste da Europa, novo choque externo a abater-se sobre o Brasil, escancarou —como havia feito a pandemia de coronavírus— a profunda incompetência da equipe ministerial e do presidente da República em especial.

Os cabeceios populistas contra a Petrobras e governadores de estado são sintomas dessa deficiência insanável de capacidade técnica e política para organizar uma saída crível que mitigue os efeitos da carestia sobre a metade mais pobre da população, justamente a que rejeita Bolsonaro em altíssimo grau.

Mas para isso seria necessário um presidente capaz e que trabalhasse de sol a sol —este não desperdiça oportunidade de passear de motocicleta e gozar folgas douradas no litoral à custa do contribuinte.

O golpismo e a agitação fácil também tecem uma manta conveniente para quem não se estabelece pelos próprios méritos. O que as pesquisas de opinião estão mostrando objetivamente é que nada disso funciona. É confusão para nada.

Explosão solar

Folha de S. Paulo

Uso da energia fotovoltaica cresce no mundo e no Brasil, que não faz má figura

Gráficos de expansão da energia de fonte fotovoltaica avançam no mundo e no Brasil em números hiperbólicos como os de erupções na superfície do Sol. A capacidade instalada nos painéis solares do planeta alcançou 1 terawatt (TW, ou 1 trilhão de watts) no mês passado.

A marca tem significado histórico ao pôr a eletricidade solar em segundo lugar no rol das energias renováveis, como noticiou o jornal Valor Econômico. Fica atrás só de hidrelétricas, de acordo com o relatório "Panorama do Mercado Global para Energia Solar 2022-2026".

Fontes alternativas de eletricidade têm papel crucial na descarbonização da economia mundial. Elas permitem abrir mão da energia de combustíveis fósseis —carvão, petróleo e gás natural— que agravam o efeito estufa, impelem a crise climática e ainda dominam o cenário energético, com mais de 60% da capacidade instalada.

O crescimento fotovoltaico tem sido vertiginoso entre as renováveis. A capacidade global dobrou em três anos após 2018. A organização SolarPower Europe, autora do documento, prediz que a força dos painéis mais que duplicará em 2025, atingindo 2,3 TW.

No ano passado a base geradora solar agregou 168 GW às redes. Mais do que a metade de todas as renováveis juntas (302 GW) e 70 GW acima da fonte eólica.

A China desponta há vários anos como campeã solar. Exibe a maior capacidade instalada (306 GW, quase um terço do observado no planeta), o maior volume adicionado em 2021 (54,9 GW) e a maior taxa de crescimento anual (14%).

O Brasil tem 15,3 GW instalados, mais que uma Itaipu (14 GW), e não faz má figura. Ocupava a 13ª posição global em 2021 e dominava na América Latina, com 43% da potência instalada na região, à frente do segundo colocado, o México (21%).

Mais de um terço (5,7 GW) foi adicionado pelo país no ano passado, indicativo de acentuada aceleração. Ganhos de escala fizeram da energia fotovoltaica a eletricidade mais barata por aqui, com preços recuando de US$ 100 por MW/hora em 2013 para US$ 30/MWh em 2021, segundo a Absolar, que representa 700 empresas nacionais.

O salto na demanda das instalações tem muito a ver com o novo marco regulatório de 2021, que prevê passar a cobrar mais à frente encargos sobre a energia assim gerada para remunerar distribuidores de eletricidade e custear a manutenção do sistema. No momento, aproveita-se a isenção.

Massacres nos EUA servem de alerta para Brasil

O Globo

Poucos dias depois do massacre em que um supremacista branco matou dez pessoas e feriu outras três na cidade de Buffalo, estado de Nova York, os americanos se viram diante de outra tragédia. O jovem Salvador Ramos, de 18 anos, entrou numa escola da pequena cidade de Uvalde, no Texas, armado de revólver e fuzil. Matou 19 crianças e dois adultos antes de ser abatido pela polícia. O presidente Joe Biden, emocionado, prometeu dar um “basta!” na facilidade com que os 330 milhões de americanos compraram 400 milhões de armas, mais de uma por habitante.

A compreensível irritação do presidente dos Estados Unidos, porém, não deverá passar disso. O direito ao porte de armas, garantido pela Segunda Emenda à Constituição, está consolidado na sociedade americana e é explorado em todas as eleições pelo poderoso lobby armamentista da Associação Nacional do Rifle (NRA).

A tragédia americana serve de alerta para o Brasil. Os Estados Unidos são um modelo para o presidente Jair Bolsonaro, que já tomou diversas medidas para facilitar o acesso dos brasileiros a armas e munições. Um país como o Brasil, com 2,7% da população mundial, já é responsável por 13% dos homicídios no planeta. Para reduzir a violência, o certo, como demonstram dezenas de estudos acadêmicos, seria fazer o inverso: desarmar a população.

Nem bem assumira, no dia 15 de janeiro de 2019, Bolsonaro já baixou um decreto armamentista, dizendo que atendia ao pedido do povo, expresso no referendo de 2005 sobre o Estatuto do Desarmamento (64% foram contrários à proibição do comércio de armas). Congresso e Justiça reagiram. Bolsonaro revogou o decreto, editou três outros e prometeu enviar um Projeto de Lei ao Congresso. Hoje ele tramita entre Senado e Câmara, repleto de emendas. Enquanto isso, o presidente adotou atalhos para ampliar o acesso às armas, favorecendo o grupo conhecido pela sigla CAC (Colecionador, Atirador Esportivo e Caçador).

Enquanto o Supremo ainda não julgou a constitucionalidade de seus decretos, as licenças para aquisição de armas aumentaram 325% nos últimos três anos. O número de CACs chegou a 1,8 milhão. Já existe no mercado da burocracia o “despachante bélico”, com site na internet pronto para ajudar o cidadão. O resultado é previsível: armas legais, furtadas ou roubadas em assaltos, se tornaram uma fonte de abastecimento da criminalidade.

Bandidos compram armas e munições usando licenças de CACs, que dão autorização para comprar até 60 artefatos. Em janeiro foi preso no Rio um CAC conhecido como “Bala 40”, que guardava um arsenal numa casa de classe média no Grajaú: 26 fuzis AR-25 e 556, três carabinas, 21 pistolas, dois revólveres, uma espingarda calibre 12, um rifle, um mosquetão, além de caixas de munição para fuzis, um patrimônio bélico avaliado em R$ 1,8 milhão. Todas as armas foram compradas legalmente para ser entregues a uma das principais facções criminosas do Rio.

Na antológica reunião ministerial de 22 de abril de 2020, Bolsonaro bradou que “povo armado jamais será escravizado”. Pode haver várias interpretações da frase. Mas não há dúvida, como demonstram as sucessivas tragédias americanas, de que facilitar o acesso às armas é um equívoco — que precisa ser barrado pelas demais instituições da República.

Governo precisa se preparar logo para enfrentar varíola dos macacos

O Globo

O descuido com a prevenção é uma doença crônica no Brasil. Apesar de não haver nenhum caso de varíola dos macacos registrado no país e de a própria Organização Mundial da Saúde (OMS) admitir que não há motivo para pânico com o aumento dos surtos fora das regiões endêmicas da África, o Ministério da Saúde deveria fazer o óbvio: se preparar. Como demonstrou a pandemia da Covid-19, os vírus não respeitam fronteiras e, com a alta mobilidade das populações no mundo globalizado, o contágio costuma ser só questão de tempo.

Desde o início de maio, mais de 250 casos (confirmados ou suspeitos) dessa doença, que em geral provoca infecções leves, foram registrados em quase 20 países fora da África, entre eles Estados Unidos, Reino Unido, Austrália, Israel e vários da Europa. A situação tem surpreendido os cientistas, pois antes ela raramente era detectada longe das regiões endêmicas. Segundo a OMS, apesar de incomum, esse avanço pode ser contido. É bom augúrio depois do turbilhão de más notícias do novo coronavírus. Mas é preciso agir.

É verdade que o Ministério da Saúde criou uma “sala de situação” para monitorar a varíola dos macacos. O objetivo, diz o governo, é elaborar um plano de ação para rastreamento de casos e definição de diagnósticos. Na sexta, tornou a notificação obrigatória. O Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações instituiu câmara técnica de pesquisa. Mas o país não precisa de blá-blá-blá, e sim de ações concretas para preveni-la. Nisso, ainda estamos mal.

Enquanto outros países correm para proteger seus cidadãos, o Ministério da Saúde encarna o papel em que se sente mais confortável: espectador. Como mostrou reportagem do GLOBO, vários governos já oferecem vacinas aos grupos mais vulneráveis, como profissionais de saúde (segundo a OMS, as vacinas usadas contra a varíola humana, único vírus erradicado com sucesso na História, são eficazes também no atual surto). Outros compram imunizantes enquanto há estoques disponíveis. No Brasil, não há doses armazenadas nem produção em curso. Medicamentos para tratar a doença também não estão disponíveis no SUS — não têm sequer aval da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).

Na pandemia do novo coronavírus, ficou evidente o custo da omissão e desse otimismo irresponsável. A Secretaria Extraordinária de Enfrentamento à Covid-19 foi criada um ano depois das primeiras mortes. A negligência na compra das vacinas foi exposta pela CPI da Covid. O governo desprezou ofertas de laboratórios idôneos e priorizou negociações nebulosas com aventureiros. O resultado da inépcia e da leniência é conhecido: quando o número de mortes batia recordes, não havia doses para vacinar os brasileiros.

Ainda que a varíola dos macacos não seja uma preocupação mundial em termos de saúde pública, o governo tem obrigação de se preparar. Isso inclui testes para diagnóstico, vacinas, medicamentos e estratégias de vigilância sanitária. Seria pedir demais que o Ministério da Saúde aprendesse com os próprios erros?

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