O Globo
Num encontro virtual (em português, “live”)
com os escritores Fernanda da Escóssia, Ana Karla Dubiela e Humberto Werneck,
este levantou a hipótese de que, ultimamente, os cronistas brasileiros tenham
botado um pé no articulismo.
Faz sentido. Afastados da alma das ruas,
imersos na tragédia planetária e abduzidos pela beligerância política, teríamos
sido impelidos a enfatizar os argumentos, com algum sacrifício da prosa porosa
com que elaboramos a percepção do cotidiano.
Já passaram por este canto de página autores
do porte de Nelson Motta e Luis Fernando Verissimo. Mezzo cronistas, mezzo
articulistas: articula-se melhor com a mão sutil do cronista; o pulso do
articulista ajuda a apreender com mais firmeza o espírito do tempo.
Hoje eu queria escrever sobre a estratégia torta (e torpe) de culpar a vítima. “Dom Phillips e Bruno Pereira sabiam que aquele lugar era perigoso”, lê-se por aí. Sabiam. Mas os culpados pela morte de Dom e Bruno — e, antes, pela de Tim Lopes, Dorothy Stang, Chico Mendes, Marielle Franco, Patrícia Acioli —foram os traficantes, milicianos, desmatadores, grupos de extermínio. As vítimas eram cidadãos que não se acovardaram. Não, não dá para dividir com o baleado a culpa de quem aperta o gatilho.
Mas aí vem o secretário de Cultura e
discorre sobre Ratanabá, capital do mundo há 450 milhões de anos — anterior,
portanto, ao aparecimento do Homo sapiens, à extinção dos dinossauros, à
fragmentação de Pangeia. E a vontade é escrever uma crônica sobre ingenuidade,
ignorância, leseira. Coisa ligeira, bem Febeapá, na tradição de Stanislaw Ponte
Preta. Com um quê de Fernando Sabino, trancando o homem nu no corredor da
própria incultura. Ou incorporar um João Brandão, uma velhinha de Taubaté, um
Sobrenatural de Almeida, que ajudem a entender como pudemos chegar a este
ponto.
Queria falar da nossa imagem no exterior.
De como deixamos de ser o país do Cinema Novo, da Bossa Nova, do futebol, do
carnaval, e viramos terra de ninguém, cenário de queimadas e carnificinas, com
um Estado paralelo instalado no cerne do Estado oficial. E — mais importante —
da nossa imagem no interior: como passamos a nos conformar com o monstro que
nos encara no espelho.
Mas vem o presidente da República e dispara
que “Jesus não comprou pistola porque não tinha naquela época”. Aí é tentador
buscar abrigo em Marina Colasanti:
— Eu sei que a gente se acostuma. Mas não
devia.
E consolo em Clarice, Vinícius, Cecília,
Drummond.
Dá um certo cansaço pensar que a Amazônia
dos povos nativos, dos ribeirinhos, do rio cuja margem a vista não alcança, da
biodiversidade sem par seja a mesma do tráfico, da grilagem, do garimpo ilegal,
da pesca predatória, dos madeireiros. E ter de argumentar sobre isso.
Que não demore muito o tempo em que os articulistas possam fazer o caminho inverso e, com Ana Karla, revisitar as cidades de Rubem Braga. Como a Fernanda da Escóssia, compor uma ode à pequena livraria do Centro. Feito o Humberto Werneck, relembrar os cronistas raiz. Assim, como quem tira os sapatos ao fim de um dia difícil e mergulha os pés no mar.
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