terça-feira, 12 de julho de 2022

Carlos Andreazza: Mandato pacificador

O Globo

Não começou no fim de semana. Tampouco foi ocorrência isolada. Aconteceu novamente. Novamente em ano eleitoral. Acontece desde há muito, há quatro anos assassinada Marielle Franco e esfaqueado Jair Bolsonaro. Há quanto se sopra o apito para cachorro morder? A mordida vem. O assoprador — nenhum mais alto que o presidente da República — não tendo controle sobre quem será o mordido. Acontecerá novamente. O assoprador tendo responsabilidade sobre a forma como mobiliza; a mobilização sendo muito mais fácil sob o cenário de grave pobreza.

O momento é decisivo.

A palavra de governante influi; estimula. Não somente a dele. Bolsonaro, ao mesmo tempo produto e produtor de instabilidades, produto e produtor da degeneração de meios, dita os comandos para o choque. É o que lhe dá existência. Ninguém sendo obrigado a lhe dançar a música. Nenhum mercado eleitoral sendo mais promissor que o do candidato pacificador.

O golpe é hoje. Não está condicionado às eleições. Não é o futuro com tanques nas ruas. Mas o presente em que o Exército — de barriga cheia — não tem outro papel senão legitimar desconfiança contra a Justiça Eleitoral; contra o sistema que endossa os mandatos políticos.

O momento é decisivo. Precisamos do mandato pacificador ou ainda pioraremos longamente antes de começarmos a sair da vala. Tudo o mais constante, pioraremos.

Costumo dizer para Marcella Lourenzetto, minha parceira na rádio CBN, que este será o ano mais desafiador de nossas carreiras. Para além do jornalismo, o desafio de 2022 é para todos os brasileiros. O desafio do equilíbrio; de sermos fiéis ao centro de nós mesmos. Não será fácil. Para muitos, longa viagem de retorno. A radicalização é elemento de nossa realidade. Ninguém está livre. A todos, porém, a chance de botar a bola no chão.

Antes de tudo, penso em termos de linguagem. Os meios importam. Estamos, desde há muito, admitindo e conjugando o território da política como de guerra. Isso nos afastou do razoável. Isso normalizou a ascensão do populismo autocrático. Ninguém precisa pegar em armas — e nunca foi tão fácil fazê-lo — para apertar o gatilho dos autoritarismos.

Quantos de nós esvaziaram relações afetivas — apartaram-se de gentes queridas — porque pautados pelo filtro das escolhas ideológicas? Desde quando medimos e reformamos nossos gostos, mesmo artísticos, em função de filiações partidárias?

Enfiados e afundados — há década — na depressão política, e sob a doença que deformou o exercício do contraditório no rito de confronto e colisão de que se alimenta o facciosismo dogmático, nunca foi tão propício o solo para que demos vazão ao totalitário que nos tenta.

Isso pode resultar numa família que não se senta mais à mesa tanto quanto no fanatizado para quem o outro, divergente, pode ser eliminado.

Que tipo de imaginação fundamenta e impele um sujeito a atirar contra o adversário? Que imaginação erige a fé autorizativa segundo a qual se está investido para disparar pela morte do que votará diferentemente? Que imaginação será essa, em que a afirmação da identidade consiste na eliminação do outro?

O espírito do tempo se manifesta concretamente. É violento. Violento no campo da política, que ocupou e perverte, transtornando a própria natureza da atividade política, transtornando mesmo nossa capacidade de identificar a gravidade do assalto.

O bolsonarismo, como sistema de conflito e para o conflito, nos exaure, turvando as percepções, enquanto mira e mina nosso centro, nosso equilíbrio. É uma máquina para a promoção do cansaço; que — via instabilidade permanente — estimula irritação; que nos empurra ao extremo de nós mesmos. Nunca fomos tão irritados. Nunca aumentamos tanto a superfície para enraizamento de extremismos.

Comecei a escrever este texto a partir e em função do assassinato do ex-premiê japonês Shinzo Abe.

O assassino alegou que não tivera intenções políticas. Isso — essa negativa da motivação política — é importante porque capta o estado da percepção do indivíduo. Matou porque insatisfeito com a economia — assim explicou. Note-se a desconexão, a supressão de qualquer causalidade. Matou por razão política, sem intenção política. Declarou que não tinha motivação política; e assumiu a motivação política.

A insatisfação, o descontentamento, um conjunto que deveria produzir voto, inclusive voto ruim, gerou — por resposta — um balaço às costas. Ressentimento resulta. Uma das mensagens: o voto não me faz representando. Esse ato precisa ser examinado à luz de uma compreensão de mundo que não contempla a mediação da política, que não acredita em filtros institucionais. Exatamente o chão de descrença que o Exército brasileiro ora ajuda a ampliar.

Se não se reconhece a política, jamais se agirá politicamente. E então a barbárie. Sem política, mas com a multiplicação de agentes fanatizados ocupando-lhe os espaços. E então Foz do Iguaçu.

 

3 comentários:

Anônimo disse...

O "professor" Olavo de Carvalho deve estar contente com os resultados de sua pregação... Os ministros que ele indicou para o MEC também... O inesquecível Abraham Weintraub, então... Agredindo os membros do STF e despreocupado com os efeitos da pandemia nas escolas! O primeiro já na companhia do capeta, os demais ainda sendo aguardados por lá!

Anônimo disse...

Compraram o Exército e a gente nunca pensou que tivesse preço, mas tem.

ADEMAR AMANCIO disse...

O pior é que Bolsonaro está dizendo que o assassino bolsonarista é a grande vítima porque foi chutado por alguns convidados mais exaltados.