O Globo
As estatísticas confirmam o que os casos
tornados públicos diariamente já sugeriam
É das leituras mais dolorosas da robusta edição 2022 do Anuário Brasileiro da Segurança Pública o capítulo sobre violência de gênero. As estatísticas confirmam o massacre que os casos tornados públicos diariamente já sugeriam. Num dia, uma menina de 11 anos vítima de estupro tem cerceado o direito ao aborto legal, tanto pelo sistema de saúde quanto por autoridades judiciais. Noutra noite, uma equipe de enfermagem flagra o abuso de um anestesista a uma parturiente em pleno centro cirúrgico. Em cinco dias de julho, no Grande Rio, três casos bárbaros de feminicídio. Mais uma semana, e um procurador do Ministério Público Federal trata, em mensagens no grupo de colegas, o feminismo como transtorno mental e evoca a ideia de débito conjugal para subtrair das mulheres o direito ao sexo consensual.
O Fórum Brasileiro de Segurança Pública
contou 5.789 tentativas e 1.341 feminicídios no país no ano passado. Significa
que, por dia, praticamente 16 mulheres são feridas de morte e quatro perdem a
vida. No Estado do Rio, houve um feminicídio a cada quatro dias, duas
tentativas a cada três. Morreram em território fluminense 85 mulheres, 263
sobreviveram. O feminicídio é também o túmulo da esperança de autonomia. “Mesmo
sendo um contexto tão conhecido por nós, ainda nos parece inacreditável
estarmos abordando em mais um Anuário tantos casos em que mulheres são
assassinadas provavelmente porque decidem romper uma relação, ou começar um
novo trabalho, ou ter novos amigos. Paradoxalmente, é justamente quando as
mulheres rompem com os papéis sociais de gênero esperados que sejam cumpridos
por elas, que se encontram em maior vulnerabilidade”, escreveram as
pesquisadoras Juliana Martins, Amanda Lagreca e Samira Bueno.
Por isso é tão violento assistir a um
integrante do MPF, como o procurador Anderson Gois dos Santos, desfilar
desinformação e sexismo dentro de uma instituição pública com missão de aplicar
a legislação em favor das mulheres. Por abusos e violências recorrentes,
construiu-se um arcabouço legal de proteção às brasileiras, que engloba do
divórcio à Lei Maria da Penha (contra a violência doméstica); tipificou o
feminicídio; fez do estupro crime hediondo; incluiu no Código Penal
importunação sexual, perseguição (stalking), violência psicológica, divulgação
de abuso sexual.
Mulheres do Brasil — e mundo afora — hoje
têm mais consciência de seus direitos, reivindicam igualdade, buscam autonomia.
Mas ainda são insultadas, agredidas e assassinadas por isso. O lamento das
pesquisadas no Anuário remete a uma sociedade e a um Estado que não são capazes
de proteger suas cidadãs nem suas crianças. Jovens e adultas permanecem atadas
a relacionamentos tóxicos por desinformação, dependência financeira, medo,
falta de acolhimento. Por isso o aparato jurídico-policial, ainda se aprumando,
não prescinde de políticas públicas de assistência social, educação, formação
profissional e acesso ao mercado de trabalho.
No lar, que deveria ser espaço de
segurança, mora o perigo. Dois terços das vítimas de feminicídio foram
assassinadas dentro de casa; companheiros ou ex são autores de oito em cada dez
crimes. Em 2021, houve registro de 230.861 casos de agressão por violência
doméstica. Estupros foram 66.020. Em 75% dos crimes, as vítimas eram
vulneráveis ou incapazes de consentir, caso das parturientes sedadas pelo
anestesista Giovanni Quintella Bezerra no Hospital da Mulher de São João de
Meriti (RJ) e das meninas de 11 anos grávidas por estupro, uma pelo padrasto,
no Rio, outra por um menor, em Santa Catarina. Nos casos de violência sexual,
61% das vítimas têm menos de 13 anos; em 79% deles, o criminoso era conhecido.
A menina catarinense conseguiu interromper
a gestação, não sem antes enfrentar a violência institucional no hospital e na
Justiça. Numa interpretação equivocada da lei, o sistema de saúde exigiu
autorização judicial. Na sequência, ela foi afastada da mãe, enviada a um
abrigo e sofreu tentativa de alienação do direito ao aborto pela promotora e
pela juíza. Realizada a intervenção, a Assembleia Legislativa (SC) aprovou a
abertura de CPI para criminalizar médicos e jornalistas. A carioquinha ficou
enclausurada por dois anos, até ser levada ao hospital por complicações de um
parto em casa. Sem ir à escola, não sabe ler nem escrever. Está num abrigo,
assim como o menino que deu à luz. O padrasto foi preso, a mãe é investigada
por abandono de incapaz.
Não é exagero falar em epidemia de brutalidade contra meninas e mulheres. O Brasil tem falado muito em pactos. Há clamor por uma frente que nos restabeleça a democracia, substantivo feminino apunhalado dia sim, dia também por um presidente da República que exalta a ditadura, ataca o sistema eleitoral e idolatra torturadores. Na segurança pública, faz-se urgente um plano de redução da letalidade policial no Rio de Janeiro, onde o governo do bolsonarista Cláudio Castro deixa, a cada mês, dezenas de mortos em favelas. É hora também de compromisso firme de autoridades, sociedade civil, candidatas e candidatos pela vida, pela segurança, pela dignidade das meninas e mulheres do Brasil.
Um comentário:
Boa parte dos estupradores são pais,padrastos,parentes e conhecidos.
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