sexta-feira, 22 de julho de 2022

José de Souza Martins* - O sentido do bolsonarismo

Valor Econômico / Eu & Fim de Semana

Não cuidamos de decifrá-lo, conhecer-lhe a origem, o enraizamento na sociedade, a ação corrosiva contra as estruturas frágeis da democracia, as alianças de interesses antissociais

O Brasil político tem perdido um tempo enorme com assuntos adjetivos da crise pela qual passa o país, tal o complexo cruzamento de realidades sociais e políticas desencontradas que ganharam corpo e visibilidade a partir do dia 1º de janeiro de 2019.

O bolsonarismo vitorioso é consequência do lento agrupamento da diversidade de anomalias e contradições que foram desdenhadas pelos partidos de motivação social. Tornou-se ele um aglomerado de resíduos antidemocráticos da democracia frágil, o negativo que encontrou sua lógica no conjunto de irracionalidades que deu vida à sua política do absurdo. Um sistema criado para assegurar o primado de uma política de crescimento econômico sem compromisso com o desenvolvimento social. Seu objetivo tem sido o de assegurar ganhos de Primeiro Mundo num país de Terceiro Mundo. A explosão da miséria, da fome, do desemprego detonaram esse modelo econômico.

Só lentamente tem conseguido o Brasil político definir como atuar, nas eleições e também depois delas, como uma frente democrática contra o autoritarismo e a herança maldita que dele ficará.

Temos tratado o bolsonarismo como assunto menor e não como gravíssima anomalia em nosso processo político. Referimo-nos aos bolsonaristas como caricaturas do que deveria ser o político e não como aquilo que são: caricaturas ativas que tiveram êxito na usurpação do poder e no desmonte das conquistas sociais.

Não cuidamos de decifrá-lo, conhecer-lhe a origem, os fatores, o enraizamento na sociedade, a ação corrosiva contra as estruturas frágeis da democracia, as alianças de interesses antissociais que neles se corporificam. O bolsonarismo não está sozinho na crise e na agonia. O sistema partidário também está.

As esquerdas, do mesmo modo, não estão a salvo. Os grupos e partidos políticos se determinam reciprocamente. Elas precisam retornar à dialética e rever-se criticamente para identificar quais são as contradições do momento histórico e a implícita práxis social do possível, transformadora.

O nosso grande desafio é o de assumir que o bolsonarismo, para ser superado, tem que ser estudado e conhecido como o que é, esdrúxulo objeto de conhecimento. A falta de seriedade do bolsonarismo tem que ser estudada a sério como problema, social e político, como eficaz máquina de limitação e empobrecimento da cidadania e de transformação do Brasil numa sociedade carneiril.

É ele expressão tardia e extemporânea de uma estratégia política que remonta ao período final da Segunda Guerra Mundial, quando já estava em andamento a Terceira Guerra. Uma estratégia que se tornará a da geopolítica do universo de poder em que estão inseridos países como o nosso. Não mais a do confronto de potências. Mas a do confronto do Estado repressivo e armado contra a sociedade, para tratá-la como inimigo interno porque abriga os que perfilham carências sociais e de expressão política que podem conduzi-la a uma coalizão possível de interesses e sujeitos capaz de mudar a vida e superar contradições.

O bolsonarismo revela nossa alienação política, nossa dificuldade para contrapor uma ação política consequente a políticos de anedota.

No bolsonarismo se reflete a alteração da realidade dos confrontos militares decorrente da explosão das bombas atômicas no Japão. Com ela a função dos militares encolheu. A definição de inimigo e o modo de combatê-lo é outra. O inimigo, praticamente no mundo todo, é hoje um inimigo inventado. E uma das funções dos militares na atualidade é a de inventá-lo ou a de supô-lo para combatê-lo. Os reais novos inimigos, por outro lado, como a produção e o tráfico de drogas, que aniquilam a vida de suas vítimas e nisso a sociedade inteira e o próprio capitalismo, vicejam porque as forças de segurança não os têm como centro de referência de sua formação.

No cumprimento de sua função de desmantelar a sociedade e disseminar a desordem permanente, o bolsonarismo é expressão de uma realidade política propositalmente criada com o objeto de instituir a insegurança, a incerteza e o medo como mediações permanentes da instabilidade política. E nesse sentido militarizar as instituições e a competência cidadã da sociedade.

É o que fragiliza a certeza necessária ao desenvolvimento das utopias de superação de tudo que nos tornamos naquilo que deixamos de ser. Somos hoje parte de um sistema político e de uma economia mundializados que têm os seus gestores, seus cúmplices, sua tecnologia, sua capacidade de desmonte das bases sociais e políticas que fazem do homem comum autor de sua própria história. Impedidos de nos saciarmos do que a realidade possibilita até o limite do subestimado possível. Para vencer iniquidades e misérias.

*José de Souza Martins foi professor titular de sociologia na Faculdade de Filosofia da USP. Professor da Cátedra Simón Bolivar, da Universidade de Cambridge, e fellow de Trinity Hall (1993-94). Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, é autor de "Sociologia do desconhecimento Ensaios sobre a incerteza do instante" (Editora Unesp, 2021).

Um comentário:

ADEMAR AMANCIO disse...

Artigo meio confuso.