Valor Econômico
Estados argumentam que crescimento da arrecadação
de 2021 foi episódico e que corte abrupto do imposto prejudicará a
governabilidade
Sejamos sinceros: é bom abastecer o carro
com o litro da gasolina na faixa dos R$ 6,00, depois de ter pago perto de R$
8,00. É, porém, aquela alegria de diabético em ceia de Natal, insustentável e
produtora de sérias consequências para a saúde.
No caso, na saúde das finanças públicas.
Embora a artilharia tenha se voltado contra os Estados, sobrarão efeitos também
nas contas dos municípios. E no pé do próprio governo federal.
Por trás da queda nos preços das bombas, estão duas leis recentemente aprovadas pelo Congresso Nacional que reduziram o peso do Imposto sobre a Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS), o principal tributo dos Estados. A primeira determinou que a taxação será calculada não sobre o preço atual do combustível, mas sobre o preço médio dos últimos cinco anos, que é bem menor (Lei Complementar 192).
A outra lei reduziu a alíquota do imposto
para 17% (Lei Complementar 194). É bem menos do que era cobrado antes, na faixa
dos 25% a 30%. Esse corte não foi só sobre combustíveis, mas também sobre a
energia, as comunicações e os transportes públicos.
Combinadas, as duas leis cortaram a
tributação estadual sobre combustíveis em cerca de 60%, calcula o secretário de
Fazenda de Alagoas, George Santoro.
Ninguém discute que cobrar perto de 30% de
imposto era exagero. Essa situação injusta se cristalizou ao longo dos anos
porque são bases tributárias fáceis de administrar. É difícil haver sonegação
nelas. Por isso, combustíveis, energia e comunicação são chamados de “blue
chips” do ICMS. Os dois primeiros respondem por 30% das receitas dos Estados,
em média.
As leis 192 e 194 atingiram em cheio as
“blue chips”. E de forma permanente, apesar de a atual alta dos combustíveis ser
transitória, provocada pela guerra entre Rússia e Ucrânia. Curiosamente, a cota
de sacrifício do governo federal, que igualmente cortou seus tributos sobre
combustíveis, só vale este ano.
Evidentemente, a arrecadação do ICMS ficará
menor, e o dinheiro fará falta aos Estados. O economista Sergio Gobetti, que há
anos estuda tributação e seus efeitos, fez as contas para o Comitê de
Secretários de Fazenda dos Estados (Comsefaz). As receitas do ICMS, que em 2021
chegaram a 7,6% do Produto Interno Bruto (PIB), poderão recuar para 6,1% do PIB
em 2027. Como os municípios recebem 25% dessa receita estadual, haverá menos
dinheiro para eles também.
Candidatos travam agora uma luta feroz para
chegar aos governos estaduais sem pensar na crise que terão de administrar. É
possível, diz Gobetti, que cheguem ao final de seus mandatos com o menor nível
de arrecadação própria de toda a história. Se tivessem clareza do que está no
horizonte, talvez não se empenhassem tanto, comentou Santoro.
O efeito dos cortes no ICMS começa a bater
no caixa no mês que vem, diz o secretário. Uma primeira consequência: os
investimentos vão desacelerar. Candidatos à reeleição nos Estados, que haviam
programado entregar obras na reta final da campanha, poderão ter seus planos
atrapalhados.
Outra consequência do caixa mais magro é o
agravamento da falta de recursos para o atendimento à população mais pobre. Os
Estados são obrigados a gastar 25% de suas receitas em educação e 12% na saúde.
Essas áreas, portanto, terão ainda menos recursos.
O tiro nos Estados, que foram escolhidos
pelo presidente Jair Bolsonaro para serem vilões no debate sobre combustíveis,
vai ricochetear e atingir o caixa federal. Rio de Janeiro, Minas Gerais, Goiás
e Rio Grande do Sul, que estavam com as contas totalmente desequilibradas,
ganharam um programa de apoio do Tesouro Nacional para recuperar a solvência.
Porém, os planos de reequilíbrio já não
valem mais, porque as projeções para a arrecadação não consideravam os cortes
que foram feitos agora. Esperava-se que Goiás e Rio Grande do Sul, por exemplo,
pudessem começar a reduzir seu endividamento em 2027 ou 2028. Pelas contas dos
técnicos, daqui a cinco ou seis anos esses Estados estariam gastando menos do
que arrecadam, podendo pagar a dívida com a diferença. Com a arrecadação menor,
isso não é mais verdade.
É possível, diz Gobetti, que Estados até
agora financeiramente equilibrados passem a precisar de apoio do governo
federal daqui a algum tempo. Não será a primeira vez que governadores virão a
Brasília em busca de socorro financeiro da União. É algo que ocorre de tempos
em tempos, sinal de que pode haver alguma coisa fora do lugar no arranjo
federativo brasileiro.
O governo federal vê o quadro com mais
otimismo. Sustenta que os Estados tinham R$ 178 bilhões em caixa em abril
passado. Em 2020 e 2021, as receitas cresceram mais do que as despesas. De
forma que eles podem dar sua cota para baixar os preços dos combustíveis.
Além disso, o corte do ICMS a 17%
corrigiria uma distorção, pois o imposto tem de ser mais baixo para itens
essenciais.
Os Estados sustentam que o crescimento da
arrecadação de 2021 foi episódico. E que o corte abrupto do imposto gerará
problemas de governabilidade.
Diante de duas visões tão diferentes, o
ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Gilmar Mendes mandou criar uma
comissão especial de conciliação entre Estados e União. A primeira reunião será
na próxima quinta-feira. As leis complementares 192 e 194 são discutidas na
Corte.
Toda essa confusão em torno do ICMS
exercerá uma pressão inédita pela aprovação de uma reforma tributária, nota
Gobetti.
Se tivesse sido aprovada, os Estados não
estariam reféns de uma estrutura desequilibrada de arrecadação do ICMS, tão
dependente de energia, combustíveis e comunicação, avalia Santoro.
Num filme que se repete desde 1988, a
reforma tributária figurará como prioridade do novo governo, seja ele qual for.
É a chance de fazer um debate maduro e estruturado. Esperemos que a próxima
temporada não termine com o protagonista morrendo na praia.
2 comentários:
Excelente jornalista, parabéns.
E ainda tem governo que apoia Bolsonaro!
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