Folha de S. Paulo
Não só viagra superfaturado infla potência
espoliatória do militarismo acima da lei
Malandro não vacila. As Forças Armadas do
Brasil se habituaram
a invocar a "honra institucional" para ameaçar e processar críticos.
"Honra institucional" não é bem jurídico tutelado em regimes
liberais. Honra é direito individual, não atributo de instituição republicana.
Mas é bem primário reivindicado por instituições autoritárias. E armadas, nesse
caso.
A respeitabilidade de uma instituição costuma ser inversamente proporcional ao quanto desfila virtudes, esconde vícios e dribla controle. O orgulho-ostentação da magistocracia e da milicocracia se exibe de graça e amiúde. Enquanto conservarem rituais declaratórios de autoimportância, permanece seu ridículo ético e estético. Sem falar da deformidade jurídica.
A legalidade das práticas das Forças Armadas
é inversamente proporcional ao quanto essa instituição subordinada aos três
Poderes ventila opiniões jurídicas de sua lavra para confrontar decisões do
mais alto tribunal do país. E a defender intervenção nesse tribunal. Juristas
da era pré-constitucional oferecem apoio. Sobra bibelô jurídico na história da
violência.
Nenhuma instituição é imune à
corrupção. Sargento
traficante de drogas que aproveitou voo da FAB sete vezes para vender
cocaína no exterior pode ser só um militar corrupto. Há instituições, contudo,
em que a corrupção funcional habita sua estrutura e ethos compartilhado. Caso
das Forças Armadas. Por trás da retidão fake se encontra outra coisa.
Milicos têm a ver com todos os capítulos
anteriores: em vez de "rachadinhas", generais
de governo fazem dobradinhas (teto salarial vezes dois); useiros do
sigilo arbitrário de 100 anos; militantes na guerra cultural lucrativa, com
mais ênfase no heroísmo moralista que no messianismo religioso; coautores do
orçamento secreto; coprotagonistas no ataque à integridade das eleições.
A conexão entre corrupção militar e
bolsonarista, portanto, é de diversas ordens. Vai além do ex-militar eleito
presidente, remunerado desde sua expulsão disfarçada de exoneração voluntária.
E hoje beneficiário da dobradinha, não bastasse tradição familiar da
"rachadinha". Esse
"mau militar" (Geisel que disse) foi o trampolim para
generais voltarem à baixa política. Assim se fizeram pedra fundamental no
obelisco da corrupção bolsonarista.
Há duas variantes da corrupção fardada: a
dinheirista e a institucional (legalizadas sob a mira de fuzil, ou ilegais mesmo).
Militares se locupletam, mas também estrangulam instituições.
"Quem gritar pega centrão, não sobra
um meu irmão", cantava
Heleno em comício eleitoral. Quando a cúpula militar vira centrão armado,
quem é o ladrão?
A mitologia de instituição incorruptível e
de ditadura sem corrupção compõe a fantasia forçada por milicos. Se Petrobras e
Odebrecht te lembram só da Lava Jato, leia o livro "As Empreiteiras
Brasileiras e a Ditadura Civil-Militar", de Pedro Campos. Os alicerces da
corrupção em águas profundas daquele tempo, porém, eram sigilosos.
Sua potência espoliatória e arrecadatória
não se resume a superfaturamento
de viagra nem a superprodução
de cloroquina; a militares empresários com preferência em contratos
públicos; a compras suspeitas de vacina na pandemia; a escolas cívico-militares
e seus "bônus de oficial da reserva". Aparece nos aumentos recordes e
injustificados de salário e orçamento.
Mas há algo mais grave: militares
inventaram lugares institucionais espúrios. Como se fossem intérpretes
constitucionais últimos, tentam assumir função de "poder moderador" e
de âncora do processo eleitoral. Ilusionistas, viraram governo, mas se vendem
como instituição de estado. Ainda buscam ampliar competência da Justiça Militar
(formada por ignorantes em direito) para julgar civis, caso de outra omissão do
STF.
Esse travestimento constitucional se
beneficia de outra mitologia: a da hegemonia de legalistas sobre os "não
tão legalistas" na caserna. Os legalistas ainda não se apresentaram.
A instituição nunca aceitou transição para
a democracia nem se democratizou. Entende hierarquia de cima para baixo e
rejeita controle civil. Sua cultura subletrada confunde democracia com
comunismo e comunista com dissidente. O currículo das escolas de guerra combate
esse inimigo. E querem substituir escolas públicas pelas suas (bônus no
salário).
Forças Armadas, na Constituição, não são
sócias nem gerentes do clube dos três poderes, mas funcionárias. Funcionárias
com dever de recato: recato com dinheiro público, com suas armas, com seus
modos e palavras. Mas cuidado: a autoestima militar tortura, mata e desova
corpos na ponta da praia. Tem sido, na história, sua "legítima defesa da
honra".
Se "inteligência militar é uma contradição
em termos", ironizava Charteris, a corrupção militar não é.
A aliança entre militarismo e milicianismo na corrupção bolsonarista? No próximo capítulo.
*Professor de direito constitucional da USP, é doutor em direito e ciência política e membro do Observatório Pesquisa, Ciência e Liberdade - SBPC
5 comentários:
Excelente artigo do colunista! Militares são os funcionários públicos movidos a Viagra... Pazuello era especialista em logística militar... As escolas cívico-militares são a escola do futuro... Imaginem a importância que terão as Forças Armadas no segundo mandato de Bolsonaro, com Braga Netto de vice!
O cara negou Modess para as meninas pobres.
E mandou o povo comprar fuzil em vez de feijão... É tanta barbaridade que a gente até esquece metade das sandices que ele fez/falou!
Artigo corajoso do grande colunista.
Bolsonaro corrupto?? Quem diz isto está achincalhando com os corruptos normais, associando-os a um genocida, que praticou crimes contra a humanidade.
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